Rui Flávio Chúfalo Guião *
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Na primeira metade do século XVII, especificamente em 1640,curioso fato ocorreu na atual cidade de São Paulo, que hoje comemora seus gloriosos 470 anos, quando grande parte de seus habitantes concentrou-se em frente à casa do paulista Amador Bueno, incitando-o a separar a capitânia do mesmo nome do Reino de Portugal e assumir o seu reinado.
Amador Bueno assomou à porta, renovou sua lealdade ao rei D. João IV e recusou ambas as propostas.
A multidão que o louvava, face à recusa, passa a hostilizá-lo, obrigando a empreender fuga pelo quintal da casa e refugiar-se no vizinho Convento de São Bento, uma das muitas igrejas da pequena cidade.
Para entender melhor o ocorrido, precisamos retornar um pouco no tempo. O colégio que os jesuítas inauguraram em 25 de janeiro de 1554, data da conversão do apóstolo São Paulo, daí seu nome, localizava-se no meio de várias aldeias de índios. Os índios eram o motivo das grandes disputas entre os jesuítas e os habitantes da terra. Os paulistas queriam sempre persegui-los e escravizá-los, os padres defendiam sua liberdade, embora mantivessem vários deles como escravos em suas fazendas.
Já fazia cem anos que a colonização da América do Sul, dividida pela Tratado de Tordesilhas entre Portugal e Espanha, se concretizava, com muitas escaramuças entre os naturais dos dois países, sempre em busca de ouro e prata.
Em 1578, o jovem rei D. Sebastião, desaparece na batalha de Alcácer-Quibir (grande fortaleza, em árabe), na África, dando início à uma grave crise dinástica em Portugal. Seu herdeiro direto é seu tio, o Cardeal D. Henrique, bastante idoso e sem descendentes. Com sua morte, herda o trono o rei Felipe II da Espanha, dando início à União Ibérica, que põe fim à Dinastia de Avis e une as duas nações, pelos sessenta anos seguintes.
A situação reflete-se na colônia, pois com um só reino, a presença dos espanhóis se intensifica na ainda pequena cidade.
Em dezembro de 1640, um golpe restaura a independência de Portugal, com a coroação do Duque de Bragança como D. João IV, iniciando-se assim a dinastia de Bragança, que duraria até 1910. A nova realidade se espalha pela colônia e os espanhóis de São Paulo engendram então a ideia de separação da província, com rei próprio.
Amador Bueno da Ribeira, eis seu nome completo, era paulista, filho de espanhóis. Bem nascido e criado, desenvolveu seus dotes de empreendedor e era dono de várias fazendas, onde se produziam trigo, milho, feijão e algodão, além de criação de gado e cavalos. Tudo tocado pela enorme quantidade de escravos índios, como era comum à época.
Mas, voltemos à fuga de Amador Bueno, o aclamado, para o Convento de São Bento, para onde a multidão agora enfurecida também de desloca. O abade recebe-a em frente da porta fechada, com exortação de que a multidão se disperse. Depois de bastante tempo, surge Amador Bueno, ladeado por todos os irmãos do convento, o que dá um toque de reverência e solenidade à aparição.
É preciso lembrar que, embora sempre houvesse escaramuças entre os padres e os paulistas, a religião tinha grande importância para os habitantes da época. A aparição de todos os religiosos do convento e as palavras de Amador Bueno, enfatizando que a situação visava somente a manter o poderio da vasta colônia espanhola da cidade, arrefece os ânimos e acaba com o episódio.
E assim, a Província de São Paulo continuou parte do Reino de Portugal e Amador Bueno um leal súdito daquela monarquia.
* Advogado e empresário, é presidente do Conselho da Santa Emília Automóveis e Motos e Secretário-Geral da Academia Ribeirãopretana de Letras