Por Eduardo Gayer, especial para o Estado
Uma série permeada pela música. Assim é Coisa Mais Linda, nova produção original brasileira da Netflix. O drama de época ambientado nos anos 1960 traz a história de Maria Luiza (interpretada pela atriz Maria Casadevall), uma jovem paulistana que, abandonada e roubada pelo marido, decide abrir um bar com música ao vivo, no Rio de Janeiro.
Para isso, Malu, como é chamada em toda a trama, conta com a ajuda de outras três mulheres: Adélia (papel de Pathy Dejesus), mãe solteira, empregada doméstica, negra e periférica, que sofre diversas humilhações de sua patroa; Lígia (interpretada por Fernanda Vasconcellos), amiga de infância e dona de voz encantadora; e Thereza (vivida por Mel Lisboa), jornalista independente e à frente de seu tempo.
Pathy Dejesus é uma apaixonada por sua personagem. “Adélia é potência, em uma época em que as mulheres não tinham poder de fala. Mulher negra, então, menos ainda.”
Ainda compõem o elenco Leandro Lima, que faz Chico Carvalho, um músico boêmio de bossa nova; e Ícaro Silva, com seu personagem, Capitão, um baterista de carreira internacional que retorna ao Brasil para viver ao lado do amor de sua vida, Adélia, e de sua filha, Conceição.
Em entrevista coletiva, Caito Ortiz, um dos produtores da série, falou sobre a missão de construir um ambiente adequado para a trama, entre penteados, figurinos, cenários e composição musical que bem representassem aquele momento histórico. “É o desafio de voltar no tempo e ser fiel a uma época de muito glamour. Trazemos os drinques, os cigarros; é um universo de referências muito forte.” A diretora Julia Rezende complementou: “prestamos atenção nos detalhes, das lingeries às joias”.
Maria Casadevall, protagonista de Coisa Mais Linda, afirma que a produção também se propõe a ser um ponto de reflexão. Muitas cenas são carregadas de machismo, racismo e preconceito social, que deixarão desconfortável até mesmo o mais conservador dos espectadores. “O roteiro não esconde as relações de classe. As personagens são falíveis, levam bordoadas de outras realidades. Isso traz humanidade.”
Uma cena emblemática se dá quando Adélia é impedida por sua patroa de usar os elevadores para levar as compras de supermercado ao apartamento em que trabalha. “Foi um momento muito difícil para mim, enquanto atriz, me colocar nesse lugar de extrema submissão”, conta Pathy Dejesus. “Na série, isso existe de forma explícita, como era na época. Hoje, ainda acontece, mas de forma velada”, comenta Maria Casadevall, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo.
O papel secundário das mulheres na sociedade, habitual naquele momento, também é, por diversas vezes, abordado na série – e questionado pelas personagens principais. Malu, por exemplo, não consegue obter empréstimo no banco sem o consentimento por escrito de seu ex-marido. Lígia é agredida fisicamente pelo marido depois de cantar em uma reunião de amigos – e, em um primeiro momento, diz que o companheiro assim agiu ‘por amor’.
A questão da mulher, na série, ganha por ser contada sob o ponto de vista de quatro mulheres, para a atriz que interpreta Maria Luiza. “Crescemos vendo histórias sendo contadas sob a perspectivas dos homens, ainda mais narrativas sobre aquela época. Essa história é contada pelos nossos olhares.”
Arte como reflexão
“É extremamente importante levar um conteúdo desse para a casa das pessoas”, diz Fernanda Vasconcellos, sobre o fato de a série abordar assuntos tão em alta nos dias de hoje. Mel Lisboa reforça que é preciso celebrar as conquistas, mas também refletir sobre o que não deixou de existir: “mulheres ainda são espancadas”.
Ao trazer discussões da atualidade – cujos traços estavam presentes nos anos 1960 -, Coisa Mais Linda estabelece um duplo diálogo: com seu próprio tempo e com o tempo que busca narrar. “A responsabilidade do artista é ser reflexo do seu próprio tempo”, afirma Ícaro Silva, citando uma inspiração para sua carreira, Nina Simone.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.