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Dois saxofones em minha vida

Infelizmente não possuo nenhum dom musical com triste­za, confesso inveja de uma letra que diz: “Como é bom poder tocar um instrumento”, principalmente em uma noite longa que demora tanto a passar.

Tenho sempre uma cena guardada como uma das mais marcantes da minha infância ao lado do meu tio Lalado, em uma acolhedora casa com uma imensa varanda, um quin­tal com laranjeiras, limas da pérsia, pessegueiros, parreiras, limoeiros, canteiros com alfaces, rúculas, alecrins, salsas, cebolinhas, manjericões, tudo cuidado com carinho e afeição.

Fecho os olhos e me vejo com cinco, seis anos na soleira da porta de pijamas, pés descalços, maravilhado assistindo meu tio tocando seu saxofone.

Naquela época os caibros da varanda eram lotados de gaiolas com canários, curiós, bicudos, sanhaços, coleiras, pintassilgos, azulões e um sabiá laranjeira.

Quando meu tio começava a soprar as primeiras notas tudo se transformava em uma sinfonia de acordes formados por gorjeios, chilreios, trinados, naquelas manhãs que pare­ciam eternas.
Com dezesseis anos vim para Ribeirão Preto, lutar pela vida.

Na noite conheci muitos músicos, com destaque para o Bilo, o Bilontra com seu saxofone.
Ficava matando saudades, sentado quietinho no canto de uma mesa pensando naquela casa e nos dias tão distantes e amados.

Bem vamos ao fato:

Fizemos uma reunião lá em nosso apartamento com a graça e a sabedoria que a Taís possuía para receber.

Naquela noite fizeram-se presentes: o violino do Miltinho, sax do Bilo e um piano maravilhosamente tocado por um talen­toso músico de nome Jovino Campos que conheci naquela noite.

O cardápio foi “Penne ao Gorgonzola” regado com molho de mel, lombo assado, arroz branco e a sobremesa, um queijo da Canastra com doce de leite Zebu de Uberaba.

Lá pelas três horas da manhã, Bilo fechou o Sax, um dos convidados ofereceu-se para levá-lo, no que foi seria­mente advertido por todos, porém o moço fez questão da empreitada.
E lá foram os dois pela madrugada, subindo e descendo ruas, passando por vielas, quarteirões, bairros e nada.

O dia amanhecendo, distantes de tudo a quilômetros de qualquer região habitada, quase chegando onde o “Judas perdeu as botas”, o jovem não aguentando mais indaga todo polido:
– Senhor Bilo, onde se localiza o vosso domicílio?

E o bilontra esparramado no banco traseiro, acorda meio zonzo, olhos arregalados, sob os efeitos do álcool, sacando aquele seu imenso sorriso de bate pronto responde:
– No Brasil.
Existir é uma gangorra que sobe e desce, roda gigante que gira, uma platéia ávida, deslumbrada e atônita.

Pipocas, sorrisos e esperanças.

Um trapezista voando, uma bailarina se contorcendo, um malabarista procurando não deixar os sonhos caírem, narizes vermelhos e seus trombones soltando brancos talcos.

A vida, seus picadeiros, rosários, tendas, sorrisos, aplausos e apupos.

Um dia o espetáculo vai embora fazendo os sonhos, fantasias, coelhos, rosas e mágicas cartolas surgindo em outros lugares.

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