Por Camila Tuchlinski
O futuro da maternidade para uma mulher é como uma série de páginas em branco, que vão sendo preenchidas à medida que a criança se desenvolve. No documentário autobiográfico Limiar, que chega aos cinemas na quinta, 19, Coraci Ruiz acompanha o processo de transição de gênero do filho que, nas primeiras imagens, aparece ainda bebezinho, quando era chamado de Violeta. “A adolescência estava tão longe que eu não imaginava as mudanças que viriam pela frente”, diz a diretora, na abertura da obra.
Em 2016, Ruiz começou o doutorado na Unicamp e, ao mesmo tempo, Noah passou a se sentir diferente: “Quando começou a transição, ele tinha quinze anos. Nessa época, independentemente das questões de gênero, me deparava com a dificuldade de ser mãe de um adolescente, que é uma ruptura muito grande com a relação que tínhamos quando era criança. Os adolescentes são mais difíceis de conversar”, diz a cineasta ao Estadão.
Por três anos, Ruiz capturou depoimentos de Noah. “A primeira conversa que fizemos com a presença da câmera foi bem legal. Ele não só me contou como estava se sentindo e quais eram as dúvidas que tinha, mas também me explicou, bem didaticamente, as questões que envolvem o corpo, a identidade de gênero, a sexualidade, a expressão.”
Na primeira parte de Limiar, Noah esclarece que gênero está diretamente relacionado à percepção que o indivíduo tem de si, do ponto de vista mental, e não está reduzido a um órgão genital Para isso, o garoto desenha uma pessoa e aponta que a aparência não define um ser humano. “As pessoas confundem muito, ‘ai, você é antifeminista porque você não quer ser uma garota’. É muito ruim isso. Não que eu não queira ser uma garota. Não sou”, disse
O filme faz uma conexão interessante entre três gerações da família e quais conceitos têm sobre sexualidade. Ruiz entrevista a própria mãe, avó de Noah. “Quando meu filho nos trouxe as questões de gênero, que eram uma novidade para nós, tive uma sensação muito forte de que essas duas pontas – avós e neto – se encontravam, tinham essa conexão como desbravadores de novas formas de se viver. Quando ele passa a se entender como uma pessoa trans e compartilha com a gente suas questões de forma tão aberta, estava nos propondo, de maneira muito íntima e visceral, uma revisão profunda da nossa forma de ver o mundo.”
Por outro lado, Ruiz percebeu que a transição de gênero não é banal. “Como qualquer processo de transformação, exige que a gente deixe algo para trás e abra espaço para o novo. Acho que, por uma questão geracional, para a minha mãe, entender o movimento do Noah foi um pouco mais difícil do que foi para mim, principalmente na questão das alterações no corpo. Mas a base para a superação dessas dificuldades foi sempre o diálogo franco”, diz.
Limiar também traz imagens de três momentos de protestos no Brasil. Ruiz recorda-se de ter participado, ainda criança, nos anos 1980, das Diretas Já. Depois, há dez anos, a diretora esteve na intitulada Marcha das Vadias, pelos direitos das mulheres.
Recentemente, ela capturou imagens de Noah em manifestação contra a homofobia. Os três episódios, apesar de distintos, foram marcados por discursos contra toda forma de violência. Na última parte de Limiar, Noah parece estar mais à vontade com a câmera. “Quando anunciei que estava encerrando as filmagens, justamente quando iria começar a testosterona (tratamento hormonal para a transição de gênero), ele ficou frustrado e me perguntou se eu não ia filmar as transformações pelas quais iria passar com a hormonização”, comenta.
E, orgulhosa da maneira como Limiar aproximou mãe e filho, Ruiz conta: “Um dia, ele comentou que, quando rolam conversas sobre ‘o que seus pais fizeram quando você se assumiu?’, e cada um conta a sua experiência, ele acha muito legal poder dizer: ‘A minha mãe fez um filme’. Decidi fazer esse documentário porque queria entrar na disputa pela ideia de família, de mulher, de sexualidade, de gênero”, conclui.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.