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Dicionário dos apaixonados pelo Brasil

Mês passado, morreu aos 96 anos, em Paris, o jornalista Gilles Lapouge, que colaborou por quase sete décadas com o jornal O Estado de São Paulo, em trabalho presencial e como seu correspondente na Europa. Sua produção estampada pelo jornal atinge mais de 10.000 crônicas. Sempre fui leitor assíduo de seus trabalhos elegantes, enxutos, construtivos e eruditos.

Lendo em seu necrológio que, entre os vários livros publi­cados havia o Dicionário dos Apaixonados pelo Brasil, baixei­-o no kindle e me deliciei com esta obra indispensável para nós . Se o livro não levasse o nome do autor na capa, qualquer pessoa diria ter sido escrito por um brasileiro orgulhoso de seus predicados e analista sério de seus problemas.

Formado em jornalismo, aos 27 anos foi contratado pelo jornal O Estado de São Paulo para ser seu redator econômico, tendo chegado ao Brasil em janeiro de 1950. Sua contratação foi uma sugestão do grande historiador francês Fernand Braudel, que veio para a implantação da USP, onde lecionava.

O livro se desenvolve em ordem alfabética, com temas saborosos. Logo no início, descreve a chegada ao país, prove­niente de uma Europa ainda em reconstrução e ansioso por conhecer o Brasil, onde residiria por três anos. Durante este período, viajou por todas as nossas regiões, especialmente norte e nordeste e com seu olhar penetrante produziu alguns dos temas retratados no livro.

Mas, outros assuntos se entrelaçam na poesia escrita do autor. Aleijadinho, os Bandeirantes, os Cangaceiros, Chica da Silva (este tema é de um lirismo único, louvando a mulher negra, alforriada, que seduz e mantém sob seu jugo o homem mais rico do Brasil na época, o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, a quem dá muitos filhos, todos muito bem criados).

Analisa as coisas brasileiras que descobriu em suas via­gens: Babaçu, borracha, boto-cor-de-rosa (descrito com gran­de felicidade, louva sua beleza, sua adaptação à água doce, seu encanto exercido sobre as donzelas, as lendas inventadas). Conta a romântica aventura de Francisco de Melo Palheta, e suas noites com a mulher do Governador Geral da Guiana Francesa, que terminam com um presente, um punhado de sementes de café, que transformariam o Brasil no seu maior produtor mundial.

Fascina-o a literatura de cordel, com seus autores repen­tistas e sua obra literária exposta em cordas, daí o nome. As dificuldades para viajar pelo Norte e Nordeste dão deliciosas estórias: há uma crônica saborosa quando o autor chega à estação ferroviária de São Luís do Maranhão e se depara com a angústia do Chefe da Estação que hesita em dizer que não sabe o dia e a hora da chegada do próximo trem; o inusitado da chuva diária que se abate sobre Belém, que faz nascer uma fábula de amor impossível.

E também elogios e críticas aos estrangeiros que desbra­varam parte de nosso país, inclusive intelectuais que fizeram da USP esta grande universidade. Resgata o verbo janelar, prática das ociosas senhoras que, por não poderem sair de casa, passam a tarde espiando nas janelas, nos rincões do sertão. Uma das últimas crônicas é sobre a saudade, palavra portuguesa impossível de descrever, somente se pode sentir e marca muito bem o que os brasileiros sentirão pela ausência de Gilles Lapouge.

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