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Da Revolta da Vacina ao Covid-19

É difícil não fazermos um paralelo entre a Revolta da Vacina de 1904 e os acontecimentos atuais em torno do novo coronavirus. No início da República, o Rio de Janeiro, a capital federal, possuía grandes problemas de saúde pública, inclusive doenças epidêmicas que atingiam a população, como a varíola, a febre amarela e a peste bubônica. Lembrando que esta última foi a mesma “peste negra” que ceifou mais um terço da população europeia no final da Idade Média. Ao as­sumir a Diretoria de Saúde Pública, em 1903, o médico sanitarista Oswaldo Cruz promoveu uma ampla campanha de saneamento básico da cidade. Ele pretendia erradicar as doenças que proliferavam por todo lado.

O presidente da República Rodrigues Alves apoiou as reformas planeja­das pelo prefeito Pereira Passos para controlar as epidemias e modernizar o então Distrito Federal. Eram medidas como alargamento de ruas, destruição de cortiços e remoção da população pobre de suas moradias, entre outras mudanças urbanísticas. O fato é que elas acabaram modificando a geografia natural da cidade e a vida cotidiana das pessoas, que se revoltaram contra essas medidas urbanísticas e sanitárias. Podemos dizer, então, que a Revolta contra a vacina obrigatória foi apenas o estopim de um conjunto de proble­mas sociais que afligiam a população mais pobre.

Na vacinação obrigatória em 1904, há a questão sanitária em si, mas também a disputa entre o poder do Estado e as liberdades individuais, além da demonização das camadas populares pelas elites oligárquicas. Entre a varíola de 1904 e o coronavírus de 2020, vários desses elementos se perderam ou se transformaram com o passar do tempo. Apesar de toda a mudança de contexto, a atual pandemia do coronavírus também apresenta dilemas sobre os limites da ação do Estado diante da proteção dos direitos individuais, assim como sobre os limites da liberdade individual diante dos imperativos de garantia da saúde pública.

O medo da pandemia pode conduzir populações inteiras a não apenas aceitar, mas também a exigir um papel mais rigoroso do Estado para fazer cumprir as normas sanitárias, num movimento contrário ao ocorrido mais de 100 anos antes, na Revolta da Vacina. Na França, por exemplo, onde a quarentena nacional se tornou obrigatória, mais da metade da população considera que o governo deveria exercer controle policial sobre as pessoas que desobedecem as normas de confinamento. O país já estipula multa e, em caso de reincidência, pena de prisão para quem sai de casa sem justificativa. E a França é exemplo de democracia liberal.
Já a China, epicentro inicial da pandemia, se sobressai como exemplo de política de sucesso para o isolamento social, a vigilância dos infectados e a destruição do vírus, mostrando que as diferentes doenças, nos diferentes contextos e momentos históricos, podem colocar o povo e o governo em posições trocadas no que diz respeito às ações de força para resguardar a saúde de todos. Aqui mesmo no Brasil, apesar de todo o alarido dos grupos contrários ao fechamento do comércio, as pesquisas têm mostrado o apoio da grande maioria da população aos prefeitos e governadores em relação às medidas de quarentena.

Outro aspecto, realçado pelo doutor em direito Flávio Henrique Unes Pe­reira, em artigo no jornal O Estado de S. Paulo, é “a ausência de interlocução entre a administração e o cidadão”, que marcou a revolta de 1904. “A revolta revelava exatamente a indignação popular diante de imposições autoritárias do Governo”, diz ele, realçando a “imperatividade e a unilateralidade da ação governamental” naquela época. Hoje, sobram canais de comunicação e pelo menos existia até há duas semanas atrás uma grande sintonia entre as ações do Ministério da Saúde e as expectativas da grande maioria da população.

Se em 1904, os mais pobres saíram às ruas contra o governo, no Brasil de 2020 o que se viu foi o contrário – carreatas de carrões importados com apoiadores de Bolsonaro foram os mais exaltados e, apesar das recomen­dações de distanciamento social, colocaram a cara pra bater em diversas ocasiões, para defender e sustentar um presidente que insiste em marchar na contramão das medidas sanitárias recomendadas por seus próprios asses­sores e por todos os especialistas internacionais em saúde pública, inclusive pela Organização Mundial da Saúde.

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