Por Daniel Fernandes
Miriam acorda às 6h, sai de casa às 7h e uma hora depois já está no posto de referência que usa para abastecer o carro com suprimentos médicos. Todos os dias. Sem demora, parte para as rotineiras visitas às tribos localizadas na região de Miracatu, Serra do Cafezal, interior de São Paulo. Auxiliada por duas enfermeiras, duas técnicas de enfermagem e uma dentista, é responsabilidade dela, a médica da equipe, zelar por 600 indígenas. Atualmente, por causa do coronavírus, elas visitam todas na mesma semana. São nove: oito guarani e uma tupi. É sua gente desde sempre. Miriam nasceu e viveu até os 15 anos em uma tribo no norte do Paraná.
Recém-formada, nunca pensou ser médica. Mas uma vez doutora, entende perfeitamente sua missão de zelar pela saúde e bem-estar dos doentes, sabe que está a serviço da humanidade. Em tempos de covid-19 ou não. “Minha missão hoje não é diferente. Não estou fazendo nada diferente do que é a minha missão. Não me coloco em um altar.” De onde vem esse senso de realidade? Qual a força que gruda esses pés no chão da responsabilidade para com o seu povo a ponto de achar que ela não faz diferença, mesmo sendo a única médica responsável por 600 vidas?
Miriam é da tribo Guarani Nhandewa, da aldeia Laranjinha, que fica nos limites da cidade de Londrina, uma das principais do Paraná. Viveu lá até os 15 anos. Teve aulas com a avó até os quatro; era a professora que ensinava português e sua língua ancestral. A mãe era técnica em enfermagem. O pai? Não era índio e era segurança. Não havia muito emprego para ele na região e veio então a decisão de mudar-se para São Paulo.
A menina perdeu a liberdade na casa do bairro do Butantã, zona oeste da Capital. Na aldeia, todo mundo se conhecia, todo mundo se cuidava. Em São Paulo era diferente: como confiar nas pessoas se ninguém as conhece? Na tribo é que era diferente, “todo mundo é parente, todo mundo frequenta a casa”. Lá, eram casas de alvenaria como a que ela vivia em São Paulo. Populares, construídas por meio de um programa estatal, mas que os parentes davam um jeito de customizar com sapê. Para acomodar o forno a lenha. Em São Paulo, a cozinha era normal.
Missão
Não tardou para a mãe voltar a Londrina, para a terra e para o sapé, mas também para concretizar o sonho de ser médica. Prestou vestibular declarando-se indígena. Passou! E começou a estudar na Universidade Estadual de Londrina. Não foi fácil. A mãe, que adotou o nome Rosângela, hoje com 60 anos, convivia diariamente com a reprovação, com a desconfiança dos colegas, que achavam que ela roubara a vaga do homem branco na universidade. Ela não tinha os mesmos papos que os colegas de classe, não tinha as mesmas notas. Bastou para sofrer preconceito. Até mesmo verbalizado. Rosângela não se formou. Tentou odontologia, então. Não se formou. Um acidente colocou fim ao sonho. Miriam não fala muito dele, como se quisesse esquecê-lo?
Esse sonho, de qualquer maneira, passou a ser vivido por Miriam e a irmã a partir de 2011. Ambas prestaram vestibular. Declararam-se indígenas. Passaram!! A irmã não aguentou o ritmo, a saudade do namorado que tinha ficado na capital. Miriam, mãe solteira de uma menina então com um ano e três meses, seguiu em frente. E seguiu. E seguiu. E seguiu. “Ela trancou (a matrícula) e eu fui… e me encontrei e coloquei (ser médica) como o objetivo da minha vida.”
A guarani formou-se em 2017. A festa foi grande, mas poderia ter sido maior. A família, por falta de recursos financeiros, não esteve na festa de formatura. Estava a irmã e a filha, Nharuã. “Quer dizer mulher sábia em uma etnia e uma flor na outra”, conta Miriam com orgulho. Foi um momento de felicidade, de agradecimento aos pais, como a médica lembra, mas ao puxar a festa na memória, ela não esconde a tristeza por não compartilhar esses sentimentos com eles naquele momento.
Vida nova
Formada, chegou o momento de retribuir ao seu povo. Mudou-se para Peruíbe, no litoral. É lá que vive com a filha, a mãe e a avó Laura, hoje com 80 anos. São elas que cuidam da menina todos os dias, quando Miriam vai cuidar das tribos em Miracatu. Miriam é funcionária da Sesai, a Secretaria Especial de Saúde Indígena. No site do Ministério da Saúde consta que a Sesai deve “desenvolver ações de atenção integral à saúde indígena e educação em saúde, em consonância com as políticas e os programas do SUS e observando as práticas de saúde tradicionais indígenas”.
Não sei se Miriam já leu este site, mas, em tempos de coronavírus, ela está ainda mais alerta, ainda mais preocupada. Tinha suspeita, mas nenhum caso ainda foi confirmado nas aldeias de Miracatu. Mas prudente que é, ela sabe que precisa estar atenta e forte, afinal, a região fica muito perto da cidade de São Paulo, que se transformou no epicentro da crise da covid-19. Preocupa a doutora, também, o entra e sai na aldeia, que não para. “É a maior preocupação, eles são supervulneráveis e se entrar pega uma comunidade inteira.”
Na vida nova, como médica, Miriam atende na área usada para ensinar as crianças da tribo, embaixo de árvores. Com chuva, não atende. “As aldeias do Paraná são diferentes das de São Paulo. Eu não tenho um posto (em cada aldeia), mas um pólo-base. A gente abastece o carro e sai para a comunidade.” A médica sonha em fazer residência, mas diz que olha para trás e “fica com dó” de abandonar o povo, diz que não vão cuidar deles como ela cuida Ela tem orgulho de sua trajetória, daquilo que construiu, dos “olhos dos pais”.
Mas tem uma passagem que resume toda essa trajetória. Recentemente, em uma das tribos de Miracatu, uma criança estava bastante desnutrida e a tribo queria usar apenas a medicina tradicional, aquela aplicada pelo pajé, para recuperá-la. Nada das técnicas científicas da doutora Miriam. Estabeleceu-se o conflito. Com a tribo e com ela mesma, afinal, Miriam respeita muito a figura do pajé, o que ele conhece e representa para o indígena. Mas Miriam tinha decidido não perder uma criança por desnutrição. Tanto fez que até pajelança a tribo fez dentro do hospital. A filha, a mãe e a avó certamente ficaram orgulhosas.