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Cuidar do espírito e do corpo: entre o velho e os novos mundos (séculos XIII-XVIII)

O interesse em conhecer como se deu a construção de padrões morais e dos modos de produção da verdade em língua portuguesa são dois pilares fundamentais no contexto da história das construções culturais desse idioma. Estudá-los implica conhecer a sociedade humana que se estende do século XV às décadas iniciais do século XX, articuladas, historicamente, pela a sociedade portuguesa e aquela que veio a ser, a partir dos séculos XVIII e XIX, denominada sociedade brasileira. Nelas, contornos de um universo moral e de normas de conduta, construído por homens letrados para os seus iguais, e difundi­dos aos grupos não letrados por meios orais e visuais, constituem um repertório propagado por meio de sermões, panegíricos fúnebres, descrições de festas cívicas, poesias, crônicas de ordens religiosas. Neste contexto, a obra “Cuidar do espírito e do corpo: entre o velho e os novos mundos (séculos XIII-XVIII)”, publicada pela EdUFSCar, em 2019, traz, em três secções, distinguidas, respectivamente, pelos termos Pensar, Ver e Corrigir, textos focados em reflexões sobre corpo e alma; visões sobre o corpo e suas mani­festações; e valorações atribuídas aos cuidados com os corpos. Exemplos?

Na primeira secção, em ‘Tristezas sentidas e tristezas exibidas nas crônicas portuguesas (Século XV)’, Susani Silveira Lemos França destaca que pecado, culpa e tristeza são uma constante em estudos históricos e filosóficos do período, resultando, de certa forma, na ideia de que dor e sofrimento eram fundamentais para que se compreendesse a humanidade. Entretanto, pontua residirem nos indícios moralizantes das crônicas do século XIV e XV, por exemplo, sentimentos e emoções que orientavam a interrogação do leitor sobre o mundo, as personagens históricas do mesmo e o que entre elas se aceitava como algo bom, capaz de “servir para reverter condutas”. Por sua vez, na segunda secção, em “Interro­gação dos jesuítas sobre as gentes do Brasil: todos os corpos têm alma? (Século XVIII)”, Miguel Corrêa Monteiro relembra as duas ideologias opostas surgidas durante a colonização espanhola: a defendida por Las Casas, que afirmava que os indígenas não eram gente bárbara, “pois viviam em comunidades, tinham uma hierarquia política muitas vezes superior à ordem política europeia”, e a defendida por Se­púlveda, que entendia os índios como “servos por natureza”, cuja submissão “ao império de nações cultas e humanas” era “o único meio de abandonarem a vida selvagem e agressiva que levavam, convertendo­-se a uma vida mais digna e virtuosa”. Questionamento, este, que o pesquisador finaliza com as seguintes palavras: “Todos os corpos têm alma, todos somos humanos, todos somos livres”. Na terceira secção, em ‘A emenda dos corpos nos receituários jesuítas (Século XVIII)’, Ana Carolina de Carvalho Viotti relem­bra o exercício da prática médico-farmacêutica pelos padres jesuítas, a despeito dessas atividades, e as do Direito, em não sendo canônicas, não serem recomendadas nem permitidas pelo Segundo Concílio de Latrão, já em 1139. Padre José de Anchieta, por exemplo, em 1555, conhecedor de remédios, “medicava e sangrava, com a ciência e, aparentemente, autorização de seu superior”. Fato, este, que fez sua Ordem, a partir da necessidade de cuidados que reclamavam os índios, obter “junto ao Papa uma autorização formal para…barbear, curar feridas e sangrar, excetuando-se… a cirurgia”. Tal prática servindo, portanto, dos índios, escravos e colonos ao governador geral.

Nas palavras de especialistas no assunto, “O estudioso encontrará aqui de bruxarias ao bem comer e beber, de prescrições curativas a domesticadores juízos morais, além de saborosas normas de conduta cuja simples existência sugere a extensão da anomia religiosa e sexual (contra a renitente melancolia de certo rei, seus médicos aconselhavam vinho, mulheres e distrações). Demais disso, não escaparam às organizadoras análises acerca da América e da África, emprestando ao livro certa perspectiva atlântica, importante a partir da Modernidade”. Assim, nos vinte e cinco ensaios que constituem a obra, ler é as­sociado a perceber, distinguir, selecionar e interpretar fatos históricos, sociais, culturais e artísticos. Além disso, sua reunião em livro coloca em destaque as produções dos grupos de pesquisa “Escritos sobre os Novos Mundos” e “Raízes Medievais do Brasil Moderno”.

Relembrando Hilário Franco Júnior, “As clássicas interpretações do Brasil partem sempre do ‘fato’ de ele ter sido ‘descoberto’ em 1500 no começo da ‘Idade Moderna’, sem considerar a longa história que seus colonizadores europeus, permanentes ou circunstanciais, traziam consigo. A opção em examinar o Brasil a partir do nascimento, e não da gestação, limitou de certa forma aqueles valiosos diagnósticos da crise de identidade que sempre nos acompanhou como nação. De fato, toda personalidade coletiva é constituída, mais do que as individuais, por inúmeros fatores anteriores à sua corporificação histórica. Negar-lhes cidadania analítica não os elimina do modo de ser brasileiro e reduz o alcance da compreen­são pretendida”. Obra de fôlego, vale conferir o resultado.

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