Por Adalberto Luque
Aos 55 anos, Edvaldo da Silva Rosa retrata com fidelidade dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, apontando a desigualdade que os negros enfrentam no mercado formal de trabalho no Brasil. De acordo com a pesquisa, pretos e pardos ocupam, em grande maioria, a base da pirâmide da hierarquia corporativa. A população preta ou parda ocupava apenas 29,5% dos cargos gerenciais.
Edvaldo abandonou os estudos precocemente. Não concluiu o ensino fundamental para trabalhar e ajudar sua família. “Nunca deixei de trabalhar. Fiz de tudo. Já fui servente de pedreiro, pedreiro, tive cantina escolar. Mas há mais de 20 anos, trabalho na área de segurança patrimonial”, explica.
O porte físico garantiu a Edvaldo trabalho na área. Por outro lado, o deixou fora do mercado formal por muitos anos. Fez muitos bicos na vida como segurança. Trabalhou como agente de segurança na cerimônia de casamento do jogador Kaká, em 2005. Embora trabalhando antes dos 14 anos, ficou muito tempo sem contribuir no mercado informal e deve demorar a se aposentar.
Edvaldo cresceu no Conjunto José Bonifácio, extremo leste da cidade de São Paulo, um local onde muitos negros e pardos acabaram “recrutados” pelo crime. Viu muitos colegas morrerem. Outros foram presos. Ele seguiu sua vida. Tentou ingressar na PM e Polícia Civil, mas não conseguiu. Hoje trabalha fazendo rondas noturnas em um condomínio, em esquema de 12 horas de trabalho, por 36 de descanso. Sempre atuando no turno da noite/madrugada. Uma garantia graças à sua alta estatura.
Violência
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontam que a violência contra pessoas negras no Brasil é extremamente preocupante. Em 2022, a cada 100 homicídios, 72 das vítimas eram pretas ou pardas.
As pessoas negras representam 67,5% da população prisional. Os pretos e pardos também estão no topo de uma grande contradição. Por um lado, 84,1% dos mortos pelas polícias são negros. Por outro, 67,7% dos policiais assassinados também eram negros.
A letalidade atinge os negros de forma mais contundente. Se a questão é a violência de gênero, os números também são desesperadores. As mulheres negras foram 62% das vítimas de feminicídio, 70,7% das demais mortes violentas e 52,2% das vítimas de estupro e estupro de vulnerável (menores de 14 anos ou mulheres sem condições de se defenderem por problemas físicos, mentais ou por estarem sob efeito de drogas lícitas ou ilícitas).
O assédio às mulheres negras também é maior. Enquanto 30% das mulheres brancas sofreram algum tipo de assédio, 43,3% das mulheres negras foram vítimas do mesmo crime.
Contra o esquecimento
A advogada Marina Camargo é presidente da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Ribeirão Preto. Mestranda em Direitos Coletivos e Cidadania pela Universidade de Ribeirão Preto – Unaerp e mestranda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP, pós-graduada em Criminologia pela Escola Superior de Advocacia, é integrante da Comissão de Avaliação de Cotas Raciais em Concursos Públicos da Prefeitura de Ribeirão Preto e da Comissão de Heteroidentificação de Cotas Raciais da USP. Uma atuante pela Consciência Negra.
“O feriado da Consciência Negra é necessário para que a data não seja esquecida ou ignorada, tendo em vista nosso histórico brasileiro de apagamento. Todavia, de forma complementar, a data deve ser utilizada para fomentar reflexões, eventos e ações políticas voltadas ao combate à desigualdade racial”, diz Marina.
A presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB Ribeirão Preto defende que é necessário celebrar as conquistas para não haver retrocesso. “Entretanto, sabemos que os passos são lentos pois, ainda a juventude negra continua sendo as maiores vítimas desta violência. Ainda somos um País muito racista e machista, de maneira estrutural, motivo pelo qual as mudanças positivas são mais difíceis. O racismo no Brasil é enraizado no cerne de nosso processo civilizatório.”
Penas mais severas
Advogada defende penas mais severas para quem pratica crime de racismo. “Apesar de eu possuir críticas sobre a política penal, acredito que aumentar a severidade do crime, como foi feito com a ascensão do crime de injúria racial ao crime de racismo, é uma das maneiras de combater o racismo. As pessoas ainda possuem muita sensação de liberdade ao discriminarem outras, por isso a criminalização severa do racismo é necessária, pois ela motiva assassinatos, suicídios, problemas psicológicos, entre outros”, observa Marina.
Reais e virtuais
Exemplos de crimes de racismo estão por toda parte. Na própria Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Campus Ribeirão Preto, já houve um episódio, com pichações em banheiros feitas em outubro de 2015. E o ambiente virtual não está livre dos crimes, muito pelo contrário. O problema já detectado por diversos especialistas é que, no ambiente virtual, os crimes não são levados tão a sério, além de criminosos utilizarem ferramentas, como perfis falsos, para tentar evitar a investigação e localização.
Sem contar o racismo presente no próprio algoritmo. “Até alguns anos atrás, pesquisávamos no Google ‘cabelo feio’ ou ‘tranças feias’ e apareciam mulheres e homens negros com seus cabelos crespos soltos, penteados ou trançados. Após muitas denúncias, a ferramenta alterou seu algoritmo”, revela Marina.
Racismo estrutural
De acordo com a pesquisa do IBGE, os negros recebem em média menos do que os não negros. Pessoas de outras etnias receberam, no segundo trimestre de 2022, a média de R$ 3.708 pagas aos homens e R$ 2.774 às mulheres. Já pardos e negros receberam, em média R$ 2.142 pagos aos homens e R$ 1.715 pagos às mulheres.
Tamer Santana cresceu no extremo da zona Leste da Capital, no Conjunto Habitacional Juscelino Kubitschek. Alguns de seus amigos de infância caíram no crime e estão presos ou mortos. Mas Tamer sempre foi determinado. Evitava errar para não ser cobrado pelo erro e pela cor.
Foi o primeiro de sua família a concluir faculdade. “E ainda sou um dos poucos. Olha que minha família é grande”, diz. Formou-se em Análise e Desenvolvimento de Sistemas. Há mais de 20 anos, é funcionário público. Trabalha no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).
“No começo me preocupei em não errar para não ter a cor como justificativa. Mas no meu ambiente de trabalho isso não existe. Nunca senti qualquer ato de discriminação. Neste ponto, o concurso público é democrático”, aduz Tamer.
Ele está ciente das dificuldades enfrentadas pela maioria das pessoas pardas e pretas. Inclusive em relação a acesso aos concursos públicos. “Eu vim de escola pública. Estudei na Escola Guerra Junqueiro, na Cohab Juscelino. Mas fui adiante. Não podemos aceitar simplesmente questões como um mercado de trabalho limitado a determinadas áreas. Hoje me sinto realizado. E vou investir em minhas filhas para que possam ter um caminho mais fácil. Comecei muito cedo no serviço público e não vivenciei casos de racismo ou discriminação. Espero que isso seja para todos, um dia”, conclui Tamer.
Ações direcionadas ao combate do racismo
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) informa, em nota, que a abordagem policial obedece a parâmetros técnicos disciplinados por lei, buscando evoluir e aprimorar sua atuação continuamente.
“A PM criou a Divisão de Cidadania e Dignidade Humana e revisou os protocolos de abordagens. A corporação oferece cursos voltados aos direitos humanos para os policiais militares, com o objetivo de promover discussões e o aperfeiçoamento dos trabalhos, sempre garantindo a igualdade social, diversidade de gênero e o direito de manifestação.
Nas escolas de formação da PM, todos os agentes estudam ações antirracistas nas disciplinas Africanidades e Direitos Humanos – Ações Afirmativas. A PM também tem participação acadêmica no grupo de trabalho ‘Movimento Antirracista – Segurança do Futuro’, sob coordenação da Universidade Zumbi dos Palmares.
Além disso, foram implementadas ações de segurança e integridade da população e dos policiais, que inclui o uso de equipamentos de menor potencial ofensivo, por exemplo, e de câmeras corporais que registram a ação. A Comissão de Mitigação e Não Conformidades analisa todas as ocorrências de mortes por intervenção policial e se dedica a ajustar procedimentos e revisar treinamentos.
A Polícia Civil, por meio da Academia de Polícia Civil ‘Dr. Coriolano Nogueira Cobra’ também conta com diversas disciplinas empregadas pela Formação Técnico-Profissional ou de Capacitação e Formação Continuada, cujo objetivo é estabelecer diretrizes e parâmetros objetivos, racionais e legais, sem qualquer tipo de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, origem, onde o policial civil, no desempenho da sua atividade, possa atuar em conformidade e respeito a princípios basilares do Estado Democrático de Direito, sobretudo o da dignidade da pessoa humana.”