Entre 2016 e 2018, o Brasil sofreu o maior surto de febre amarela dos últimos 100 anos. A epidemia gerou imensa preocupação, provocando até correria das pessoas para os postos de saúde em busca de vacina. Pesquisadores brasileiros, em parceria com ingleses, realizaram um mapeamento genético que revelou detalhes sobre a proliferação da enfermidade. Ao contrário do imaginado, a doença se espalhou pela transmissão silvestre, menos grave que a urbana (a aposta inicial), e pode ter sido potencializada pela ação humana. As descobertas foram publicadas na edição desta semana da revista Science e devem ajudar em novas estratégias de combate à doença.
O trabalho é uma parceria entre investigadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, e da Universidade de Oxford, no Reino Unido. O consórcio de pesquisadores utilizou uma técnica extremamente moderna de mapeamento genético. “Fizemos o mesmo com o zika vírus e tivemos sucesso. Com isso, recebemos um pedido do Ministério da Saúde para realizar o procedimento com a febre amarela. Usamos um laboratório móvel e analisamos o genoma de mais de 50 indivíduos, tanto humanos quanto macacos, durante a proliferação em Minas Gerais”, conta ao Correio Luiz Alcântara, um dos autores do estudo e pesquisador do Laboratório de Flavivírus da Fiocruz (RJ).
Ao todo, os pesquisadores sequenciaram o genoma de 62 indivíduos, que foi comparado com outros já conhecidos. “Esse é um número grande se contarmos que, antes, existiam apenas 49 genomas de febre amarela no mundo todo e, desses, 19 eram só do Brasil”, ressalta o cientista. A próxima etapa do trabalho terá mais de 200 sequências genéticas, incluindo as do vírus que circulou também no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Por meio dos dados genômicos e também de informações epidemiológicas e espaciais, os cientistas concluíram que o surto da doença se deu por meio da transmissão silvestre do vírus, feita por mosquitos silvestres (Haemagogus e Sabethes) e por primatas não humanos. Mais grave e de difícil controle, a transmissão urbana tem como vetor o Aedes aegypti. “Embora as condições para a transmissão urbana pareçam estar lá, felizmente isso não aconteceu”, destaca, em comunicado, Nuno Faria, pesquisador do Departamento de Zoologia da Universidade de Oxford e um dos autores do estudo.
Para os investigadores, ações humanas podem ter contribuído para o transporte dos vetores da doença. Segundo Alcântara, o surto resultou da introdução de uma estirpe de febre amarela que veio, em última análise, da região amazônica, “onde o vírus circula silenciosamente”. “Descobrimos que o surto emergiu em primatas não humanos em Minas Gerais no fim de julho de 2016, vindo do Norte e/ou do Centro-Oeste, possivelmente resultado do transporte de mosquitos infectados em caminhões e/ou pelo tráfico ilegal de primatas não humanos”, detalha.
Rumo às metrópoles
Depois disso, o vírus espalhou-se rapidamente em populações locais de mosquitos silvestres e primatas não humanos a uma velocidade média de 3,3 quilômetros por dia e em direção a São Paulo e ao Rio de Janeiro. O ciclo silvestre de transmissão em primatas passou despercebido durante 2016, mas explodiu para as populações humanas no início de 2017. Mais de 2 mil casos foram registrados e 676 mortes, confirmadas entre dezembro de 2016 e março de 2018.
A análise também revelou que a maioria dos casos da doença ocorreu em indivíduos do sexo masculino (85%), com idade entre 40 e 49 anos, e grande parte trabalhadores rurais. Esses infectados viviam, em media, a cinco quilômetros de áreas florestais e não tinham sido vacinados contra a febre amarela. “O número maior de homens infectados está relacionado diretamente à ocupação da classe masculina em zonas rurais, muito ligada a atividades ocupacionais ou de lazer”, ressaltam os autores.
Os resultados do mapeamento genético do surto de febre amarela podem ajudar a montar estratégias que possam evitar e combater novos episódios de proliferação da doença. “Esse vírus afetou a humanidade por centenas de anos. Ele vem em ondas. Então, nunca podemos eliminá-lo completamente. O problema é que ainda não entendemos o suficiente sobre o comportamento complexo do vírus em populações de animais. Precisamos dessas informações para controlar futuros surtos – para vacinar as pessoas certas, no lugar certo, na hora certa”, destaca Oliver Pybus, professor no Departamento de Zoologia na Universidade de Oxford e um dos autores do estudo.
Para Pedro Vasconcelos, medico virologista e pesquisador do Instituto Evandro Chagas, no Pará, os dados coletados e analisados poderão ser usados para refinar estratégias da saúde pública com o objetivo de combater a doença tropical. “É um trabalho bem amplo, que verificou e restabeleceu o surto da febre amarela no Sudeste, um dos maiores do território brasileiro. São dados sólidos, que têm enorme potencial para serem utilizados no controle da doença e podem, sim, gerar mais eficiência se forem bem aplicados”, diz o especialista, que não participou do estudo.
Vasconcelos também ressalta como a pesquisa confirma a suspeita de um fator que pode ter contribuído para o surto recente. “Desconfiávamos de que a falta de vacinação nessas áreas de risco seria um fator importante, e vemos isso novamente com esses dados, reforçando esse ponto. Acredito que isso nos diz que é necessário ter um extremo cuidado com a cobertura vacinal. Ela pode fazer a diferença”, ressalta.