Tribuna Ribeirão
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Cheiros, fragrâncias, bálsamos e lembranças 

Edwaldo Arantes * 
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Aos finais de semana, passo ao lado do fiel escudeiro tinto seco português, relembrando passagens da minha longa trajetória. 
 
Tecendo reminiscências dos cheiros e suas importâncias nas lembranças, sua precisão em marcar momentos, instantes, ciclos, fases e períodos. 
 
Recordei-me da Praça Comendador José Honório, onde, maravilhado, vendo o sol se pôr nas tardes vazias sem semblantes, apenas a solidão ajustando os pensamentos no correr do dia findando aos poucos, iluminado pelo amarelo do poente, projetando as sombras dos Ipês, preparando-se para as primeiras estrelas. 
 
O perfume dos manacás e damas-da-noite invadindo o olfato, fazendo sonhar acordado. 
 
O odor das pipocas quentinhas ao adentrar o elegante “atrium” do “Cine São Sebastião”, tapetes vermelhos, sofás em couros pretos, bombonieres, vasos e flores, a senhora Dona , à porta, guardiã dos segredos que brotavam das telas. 
 
Os cheiros emanados da “Sorveteria do Spósito”, ameixas, pistaches, flocos, espumones, bananas-split e “vacas-pretas”, uma mistura de sorvete e refrigerante. 
 
O aroma que brotava dos queijos, salpicados de orégãos e manjericões das pizzas em pedaços, do “Bar e Restaurante Achei”. 
 
O eflúvio que emanava do carne-queijo, das canjas após os Carnavais do “Clube Paraisense”, no “Bar Papagaio”. 
 
O arroz com frango nas madrugadas dos sábados aos finais dos bailes na “Sociedade Liga Operária”, servido no balcão do “Bar Dezessete”, que cerrava suas portas somente às 15h, nas tardes das sextas-feiras da paixão, respeitando o sofrimento e o flagelo. 
 
O olor das velas nas procissões, vendidas pela garotada, repetindo o bordão: “Vela, velinha, velão, quem não comprar não vai à procissão”. 
 
O cheiro do incenso e mirra do turíbulo balançando, embalando orações e penitências. 
 
A Procissão do Encontro subindo a Rua Placidino Brigagão com a compleição da Virgem Maria em direção a imagem de Jesus dos Passos, saindo da Paróquia de “Nossa Senhora da Abadia”, postado em um andor carregado pelos devotos, revezando-se até ao “Colégio Paula Frassinetti”, local da aproximação. 
 
Após o encontro, as imagens da mãe e filho são levadas pelos fiéis, retornando à Matriz em seus terços e crenças, descendo a Rua Pimenta de Pádua.   
 
A Procissão do Enterro em seu silêncio, quando a “Verônica” entoa sua voz em um canto, solitário, triste e misterioso, envolta pelo véu e vestimentas negras, nas escadarias. 
 
O primeiro perfume com a fragrância da época, chamado “Lancaster”, que os rapazes usavam em festins ou simplesmente em colóquios entre amigos, sonhando com a filha do Coronel. 
 
O bálsamo que ficava nas palmas das mãos pelas rosas furtadas dos canteiros da Praça Comendador João Alves e, depositadas, ao findar as canções, nos umbrais. 
 
Vez ou outra, o despertar irritado de um pai severo, acendendo as luzes e provocando a debandada geral em ofegantes correrias. 
 
Os cheiros nos marcam até o findar da existência, neles guardamos nosso trajeto desde o aroma do bebê ao ancião curvado pelo tempo e seu perfume da velhice. 
 
Como abrir e folhear um álbum, fotos são testemunhas das alegrias, tristezas e adversidades, reproduções categóricas dos nascimentos e velórios, testemunhas oculares dos caminhos que separam a vida da morte. 
 
Com o tinto português sempre ao lado, busquei um Drummond. “Tem gente que tem cheiro de passarinho quando canta, de sol quando acorda, de flor quando ri. Ao lado delas, a gente se sente no balanço de uma rede que dança gostoso numa tarde grande, sem relógio e sem agenda. Ao lado delas, a gente se sente, comendo pipoca na praça, lambuzando o queixo de sorvete, melando os dedos com algodão-doce da cor mais doce que tem para escolher. O tempo é outro. E a vida fica com a cara que ela tem de verdade, mas que a gente desaprende de ver”. 
 
Solicitando licença e escusas ao Poeta Maior, confesso: 
 
O aroma único da mulher amada para sempre impregnado, após as longas e tórridas noites de amor, nos lençóis, corpos, corações e lembranças. 
 
* Agente cultural 

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