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Cartografia e Literatura: a Herança Latina na Idade Média

Nos três primeiros séculos da era cristã, coube a influentes teólogos, professores e mestres cristãos tecerem os preceitos doutrinários das verdades de fé do cristianismo. Defendendo-o dos ataques pagãos e das heresias, sua filosofia, denominada Patrística, foi a responsável pela criação da tradição católica, absorvendo muito da cultura latina, fundadora de Roma, Roma Antiga e do Império Romano. Entretanto, essa absorção cultural, ocorrendo também no plano científico, fez com que as investigações geográficas e as representações do mundo físico se limitassem ao já conhecido, não empreendendo progressos.

A concepção vigente? “A concepção romana de uma terra achatada, sacramentada pelos dados bíblicos”. Os mapas da cultura patrística? Representações simples em diagrama T-O, onde o O representa os limites conhecidos do Ecúmeno (área geográfica que é permanente­mente habitada pelo homem) e o T, em seu traçado horizontal, a linha que divide os conti­nentes euro-africano e asiático, cortada pelo eixo vertical que é o Mediterrâneo. Superficiais e concebido a partir dos diagramas romanos, sua divisão tripartite do mundo, nada científica, vem da divisão bíblica que Noé fez entre seus três filhos, daí serem chamados Mapas de Noé.

A partir do século IX, introduzindo palavras em dialeto na linguagem culta dos Mapas de Noé, geógrafos monásticos buscavam registrar as contribuições cartográficas que surgiam. No século V, coube a Santo Isidoro, bispo titular da sede de Sevilha, recolher, preservar e transmi­tir o conhecimento clássico em sua obra Etimologias, escritas durante vinte anos. No décimo quarto livro, fiel às dimensões científicas das teorias antigas que transcreveu, Santo Isidoro apresentou uma síntese do pensamento cosmogônico – relacionado à origem do universo: manteve o sistema geocêntrico de Ptolomeu, e concebeu a Terra como uma grande esfera de movimento contínuo, dividida em quatro partes, uma delas ainda desconhecida devido às altas temperaturas, desfavoráveis à vida humana. “Supôs o Paraíso Terrestre na Ásia e aceitou a grande maioria das lendas descritivas clássicas sobre a Índia e a China e seus misteriosos povoadores”. A descrição do arquipélago das Canárias faz coro à fama do lugar como am­biente feliz, dotado de belezas naturais. “As Ilhas Afortunadas denotam com seu nome que se goza nelas de todo o bem, de felizes e afortunadas frutas em abundância… morros e montes se cobrem de espontâneos vinhedos, e, em lugar do mato, crescem os cereais e a oliveira, de onde o erro dos gentis-homens da antiguidade e os cantos profanos dos poetas, que só por sua fecundidade pensaram que fosse o paraíso. Estão no oceano em frente da Mauritânia, próxi­mas ao Ocidente”.

Nos trabalhos posteriores, historiadores registram a grande influência dos trabalhos de uma figura medieval, o beneditino Beato de Liebana. Seus mapas, ovalados, reuniam elemen­tos nativos e religiosos, representando um mundo dividido em quatro partes e orientado para oeste, bem como, referências aos diferentes povos que habitavam a Terra e às regi­ões onde a fé cristã era mais efetiva, o que os tornavam mais ricos em detalhes que os de Santo Isidoro, abundando a Alta Idade Média com cópias de seus manuscritos. “O pouco conhecimento cartográfico de Beato corresponde à visão cristã do mundo como uma rea­lidade projetada para o centro espiritual de Jerusalém. Essa é uma constante em todos os mapas inspirados na configuração típica dos beatos, como o de Lambert de Saint Ouer (século XII), o de Ricardo de Haldingham (metade do século XIII) e o de Ebstorf (final do século XIII). Cartografia simbólica, excepcionalmente bela e expressiva, baseada na concepção da Terra plana e de contorno circular”.

Registra-se que, até que ocorresse a aparição dos mapas marítimos, seus trabalhos foram os de maior influência sobre estudiosos britânicos e italianos. Supõe-se que a mais bela cópia dos mapas de Beato está contida num pergaminho feito no século XI, atualmente arquivado na Biblioteca Nacional de Paris. Nele, os principais acidentes costeiros das três partes do mundo, a costa com expressão cartográfica, as cordilheiras de forma denteada, os rios seguindo para a desembocadura e os espaços urbanos representados por edifícios.

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