Pela primeira vez traduzida no Brasil a partir do original latino, e publicada em edição bilíngue pelo Grupo Autêntica, a obra “Carta sobre a tolerância” (1689–1692), escrita pelo filósofo inglês John Locke (1632-1704) devido à repercussão das guerras religiosas ocorridas no início da Reforma Protestante na Europa Ocidental e do Norte de 1524 a 1648. Estas guerras, fortemente influenciadas pela mudança na crença, pelo conflito desencadeado e pela rivalidade que então se produziu, foram fundamentalmente empreendidas por razões políticas, com coligações formadas através das divisões religiosas. Locke, precursor da democracia liberal, forma de governo da qual se espera que o Estado se abstenha de interferir na esfera de direitos dos cidadãos e na economia, entendida, esta última, como elemento dotado de mecanismos de autorregulação, focalizou, na obra, a tolerância religiosa contra os abusos do absolutismo, teoria política que defende que alguém deve ter o poder absoluto.
Formulando três argumentos principais, a saber: (1) Os juízes da terra, o estado em particular e os seres humanos em geral, não podem avaliar de forma confiável as afirmações de verdade de pontos de vista religiosos divergentes; (2) Mesmo que pudessem, aplicar uma única “verdadeira religião” não teria o efeito desejado, porque a crença não pode ser compelida pela violência; (3) A coerção da uniformidade religiosa levaria a mais distúrbios sociais do que permitir a diversidade, Locke buscou defender o que hoje se costuma chamar de separação entre Estado e Igreja. A finalidade das leis, afirma Locke, consiste em preservar e promover os bens civis dos cidadãos (notadamente a vida, a liberdade e a propriedade), o que significa que entre as funções do Estado não se encontra o cuidado com a salvação das almas, tarefa que pertence apenas aos indivíduos e às igrejas a que eles se associam. A afirmação de que a diversidade de crenças e cultos deve ser tolerada constitui, portanto, a tese central desta obra, que aborda ainda questões como os limites da tolerância, o direito de resistência ativa, o malefício decorrente da intromissão de clérigos na política e a incompatibilidade entre o cristianismo e a coerção religiosa. Entretanto, para John Locke, essa liberdade não seria aplicável, entre outros, ao “homem primitivo”, pois que os povos ditos primitivos não estariam associados ao restante da humanidade no uso do dinheiro.
Um trecho? “Inverno europeu de 1689, meados de fevereiro. Locke embarca no navio Isabella, em The Briel, Holanda, com destino ao porto de Harwich, Inglaterra, de onde partiria para Londres e colocaria fim a um exílio de cinco anos e meio. Em setembro de 1683, quando optou por deixar seu país, seus medos eram a prisão e, talvez, a morte… Até voltar do exílio na Holanda, Locke não publicara nada de relevância filosófica: poemas…recensões…além de um resumo em francês do “Ensaio sobre o entendimento humano”… No início da Modernidade, defender a tolerância religiosa significava, nos termos mais concretos possíveis, opor-se ao uso da força nas questões religiosas, isto é, opor-se à tortura, à prisão, à taxação, ao confisco, à perda capital e ao exílio, explicitando as injustiças ou abusos constitutivos da busca pela uniformidade religiosa”.
Tendo ficado conhecido como o fundador do empirismo, doutrina segundo a qual todo conhecimento provém unicamente da experiência, limitando-se ao que pode ser captado do mundo externo, pelos sentidos, ou do mundo subjetivo, pela introspecção, sendo descartadas as verdades reveladas e transcendentes do misticismo, ou apriorísticas e inatas do racionalismo, Locke foi um defensor da liberdade e da tolerância religiosa, pregando, como filósofo, a teoria da tábua rasa, segundo a qual a mente humana era como uma folha em branco, que se preenchia apenas com a experiência, teoria, essa, que avulta como crítica à doutrina das ideias inatas de Platão, segundo a qual princípios e noções são inerentes ao conhecimento humano e existem independentemente da experiência.
Nesta edição do Grupo Autêntica, a obra vem acompanhada de introdução, notas e comentários que têm o objetivo de contextualizar o pensamento do autor, propondo uma interpretação de seus principais argumentos.