O Jornal da USP, em recente edição, abordou a morte do importante filósofo, ensaísta, crítico literário e intelectual público português Eduardo Lourenço, que veio a falecer no final de 2020. Por ocasião de seu falecimento, Maria Manuela Cruzeiro, pesquisadora da Universidade de Coimbra, e estudiosa da obra do escritor, escreveu uma sensível carta de despedida ao mesmo, com trechos que reproduzimos a seguir. Publicada originalmente no jornal português “O público”, revela ao leitor brasileiro um pouco do muito que Eduardo Lourenço representa para a compreensão de um “Portugal como destino”.
“Caro professor, querido amigo,
Aí, no seu São Pedro de Rio Seco, sentiu porventura o rumor das vozes. Muitas e variadas em busca do que melhor traduza o raro privilégio da sua presença nas nossas vidas. Quase todas trazendo memórias pessoais mais ou menos íntimas, mais ou menos curiosas, de momentos que partilharam consigo, e só por isso os torna depositários de um tesouro demasiado precioso para ser ignorado! (…) Cito-o de cor: “Nós escrevemos como se fossemos eternos. Sem essa ilusão de eternidade como coisa nossa, nós nunca escreveríamos nada de grandioso”. (…) E não foi Pessoa, o seu alter-ego, ou um seu secreto heterónimo, que lhe ensinou a verdade do fingimento? E que o escudou para enfrentar os “dragões de todas as evidências que enganam”? Então essa “evidência” da sua morte … tomou de assalto os círculos midiáticos (…) só podia ser um engano… ou uma ficção… quem sabe?
Como podia morrer alguém que, durante tantos e tantos anos, habitou com tão intenso prazer, lucidez e generosidade, a nossa paisagem cultural e o núcleo mais íntimo dos nossos afectos? (…) Alguém a quem amorosamente confiámos o diário de bordo desta nossa comum navegação entre imaginação e mundo? E que primeiro nos dava as boas e más notícias: das tempestades como dos dias de bonança reais ou sonhados? (…) E não era só o assunto: da filosofia à política, da música, da pintura e da arte em geral à história, do cinema à literatura (sua paixão maior), dos momentos e protagonistas principais da nossa vida cultural, política ou social, aos aspectos mais fúteis ou efémeros da nossa pequena comédia mundana, segundo a sua máxima de que um ensaísta é o que pensa tudo o que deve ser pensado, e mesmo o que o não merece (…) Era também o lugar de onde essa fala nos chegava: das mais humildes e modestas instituições de cultura e de ensino deste país, às mais prestigiadas universidades nacionais e internacionais, das páginas do mais obscuro jornal de província, às mais conhecidas publicações literárias e culturais, das pequenas rádios locais aos principais canais de televisão… dos inúmeros congressos, colóquios, encontros, da imensidão de livros que apresentou aos prefácios que escreveu… onde a sua presença era sempre promessa de regresso ao fulgor das perguntas iniciais.
Sedução… é a palavra. Primeiro por si, como pessoa: esse misto de camponês e de príncipe… essa atenção aos outros e distracção de si mesmo… esse sorriso tão jovial de quem faz de cada encontro uma festa… essa alma de eterno viajante que chega como se sempre estivesse, e parte como se ficasse. (…) E contudo, sempre capaz de suspender todas as evidências consagradas e nos levar a ver as coisas como se pela primeira vez as víssemos. Consigo aprendi que o pensamento pode ser uma imensa alegria. Maior ainda quando partilhada e vivida em tempo real. Vê-lo e ouvi-lo, onde e sobre o que quer que fosse, era isso: a imensa alegria de o ver pensar. Com temor e delicadeza… tateando o chão e olhando em volta… perscrutando sinais… ensaiando o voo… criando, experimentando, hesitando, aceitando ser escolhido em vez de escolher e por isso mesmo chegando sempre demasiado longe… Talvez por isso Saramago tenha sido mais claro e veemente: “E veio Eduardo Lourenço e explicou-nos quem somos e porque o somos. Abriu-nos os olhos, mas a luz era demasiado forte para toupeiras habituadas à escuridão. Por isso tornámos a fechá-los”.
Voltando à questão da eternidade, motivo primeiro desta minha carta. Quem melhor do que o senhor se aproximou dela, a ponto de a ter encenado (fingido) nesse estranho e inqualificável objecto que é o filme Labirinto da saudade (…) o senhor passeia por aquele espaço fantasmático no seu passo miudindo, no seu sorriso terno e ausente, por vezes divertido, de quem não entra afinal naquela história, de quem à boa maneira do seu mestre, se desdobra sempre num outro porque, como escreveu algures, “nós só existimos no espelho dos outros”. Procurar-se entre os outros, entre nós, a sua “lusa tribo” (Lídia Jorge) é afinal a razão última da sua demanda (…) Por isso só faria sentido que essa sua entrada na ante-câmara da eternidade fosse testemunhada e acompanhada pelos amigos que, na hora crepuscular, o não deixaram sozinho face à esfinge e lhe mostraram a sua verdadeira face no espelho da nossa orfandade e gratidão.
Foi assim que o vi partir para férias… sem outra bagagem que não a companhia dos seus irmãos poetas, com destino à verdadeira eternidade que é a infância. Esse tempo sem tempo, esse “grande círculo do sempre”, cujo brilho de puro cristal nunca deixou que os desastres da vida embaciassem. O senhor sempre soube que nunca saiu daquele planalto árido e varrido de vento, como ele nunca saiu de si. Habitou as margens da sua imaginação como todas as realidades da vida não habitaram o centro. Por isso a ausência que hoje nos fere, é o mais real e verdadeiro de todos os seus regressos. Na contra-luz dos milhares de páginas que escreveu desenha-se a imagem de alguém que sempre procurou na escrita “esse gesto de redenção que nos ajuda a atravessar a noite mais opaca até à reinvenção da infância imortal de todos os homens”. Disse-o, dizendo-se, de Antero, aquele que melhor que ninguém mostrou que “o mar da ficção é o único onde a salgada e perecível vida se volve em realidade”. Hoje só os poetas deviam falar!… Só… incessante, um som de flauta chora… (Camilo Pessanha). Sua, Maria Manuela Cruzeiro”