Por Luiz Zanin Oricchio
Não é difícil comover o público com filme de criança. Pelo contrário, é até bem fácil cair na demagogia que, misturada ao sentimentalismo, desanda a maionese e transforma o que poderia ser crítica social no chamado “miserabilismo”. Nadine Labaki, ao trabalhar com o tema da pobreza infantil em Cafarnaum, evita de certa forma esses perigos óbvios. Vai além da apelação sentimental, embora o tema se preste a isso. Faz um trabalho contundente, emocionante, pouco previsível e sem concessões, ou quase isso. Assim é Cafarnaum, que tem comovido plateias mundo afora e recebido inúmeros prêmios, entre eles o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes.
Cafarnaum é duro ao contar a história de um garoto que faz de tudo pelas ruas de Beirute para sobreviver. Inclusive torna-se cuidador do filho pequeno de uma imigrante africana em troca de casa e comida. Mas o próprio início já é desconcertante, quando Zain (Zain Al Rafeea), com uns 12 anos de idade, enfrenta um tribunal por ter esfaqueado alguém. Na corte, ele se transforma de réu em acusador ao erguer o dedo… nada menos que contra seus próprios pais. E qual o crime pelo qual Zain inculpa o casal? O simples fato de terem lhe dado a vida, trazido a este mundo cruel, no qual ele luta desde cedo para não naufragar. Nada mais, nada menos.
A história começará por esse insólito drama de tribunal e o resto será um flashback destinado a mostrar ao espectador como chegamos a ele. Vemos as condições de vida de Zain e não estranhamos que ele prefira a rua à improvável segurança do seu lar. Pai e mãe não são exatamente modelos de segurança familiar a serem seguidos. Muito ao contrário. Mas nem por isso o filme os transforma em caricaturas. Tenta entendê-los, como se fossem representantes de algum tipo de maldade inata, mas no interior de uma situação social e de uma determinada cultura. Que, se não desculpam o que fazem (e deixam de fazer) não os transformam em monstros, mas em vítimas eles próprios.
Na rua, Zain encontrará apoio em uma imigrante ilegal, que tem um filho pequeno, Jonas, e precisa de alguém que cuide da criança enquanto ela trabalha, também em condições precárias. Um parêntese. Nadine Labaki foi acusada, entre outras coisas, de tentar colocar na mesma história todos os males do mundo. Não lhe bastava enfrentar a questão da desigualdade social extrema, mas também fazia questão de abordar o tema das imigrações, que se tornou um dos mais prementes da contemporaneidade. Eleitores europeus têm sido tentados por políticos populistas de direita, que se propõem bloquear, pela força, as ondas de imigrantes. A Itália é um desses casos. A Inglaterra, outro. Segundo analistas, o plebiscito favorável à saída da União Europeia – o Brexit – teria sido uma reação mais ou menos irracional à questão da imigração. De modo que Nadine Labaki, ao contrário dos que a acusam de ambição temática, encontra-se atenta às coisas do mundo. Em Cafarnaum, faz o cruzamento desses dois problemas humanitários – a pobreza doméstica em seu país e a questão irresolvida de imigrantes, que vêm de outras terras, ainda mais carentes ou perigosas.
Daí o título do filme. Cafarnaum é o nome de uma cidade bíblica, hoje sítio arqueológico em Israel, no qual acredita-se que Jesus tenha pregado. Mas é também um sinônimo de caos – a desordem que vige num ambiente de pobreza, em que necessidades básicas como alimento, educação e moradia não são providas. O caos da pobreza
Mais de um crítico apontou a existência de um certo toque de Os Esquecidos (Los Olvidados), o clássico que Luis Buñuel rodou no México. Há uma certa aproximação, que estaria na dureza das relações sociais, inclusive dos pobres entre si, que não hesitam em explorar uns aos outros. O paralelo é válido, mas não pode ser levado às últimas consequências, porque a radicalidade de Buñuel não tem similar no cinema contemporâneo.
Ao contrário de Buñuel, Nadine não deixa de acenar com um “raio de sol”, uma fímbria de esperança no desfecho desse filme belo, duro, às vezes implacável, mas que, em seus melhores momentos, atinge um sentido poético da injustiça social que conforma nosso mundo, vasto mundo, que não se chama Raimundo e não vislumbra rimas ou soluções a curto prazo.
Muito do seu encanto e fascínio triste se devem a Zain Al Rafeea, uma criança carismática demais, dessas que, de tempos em tempos, mas muito raramente, aparecem no cinema. Não parece nem estar interpretando, mas revivendo uma vida que já foi sua. Como não simpatizar com esse moleque que toma conta de um bebê e usa de sua simpatia e malandragem para conseguir o que quer pelas ruas?
Mas há também o roteiro engenhoso, que se constrói a partir daquela terrível acusação inicial e se desenvolve por toda a trama. Além de bem construída, sabe reservar espaço para pequenos achados poéticos. Um exemplo é o “veículo” improvisado por Zain para transportar o bebê pelas vielas da cidade. Outro, a maneira de “roubar” imagens da televisão de um vizinho através de um espelho. Pequenos pontos de luz em meio às sombras.
No desfecho, há algo que enfraquece Cafarnaum, o discurso colocado na boca do protagonista que se torna porta-voz da diretora e de sua indignação social. A própria Nadine está no elenco, no papel de uma advogada. Esse discurso da injustiça social é um tanto redundante, pois, na verdade, ele já se articulou ao longo de todo o filme e trouxe para si a adesão do espectador. Não precisava ser repetido e articulado em palavras para se tornar convincente.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.