Cruzei com Jacaré. Eu e ele somos aposentados da Polícia Rodoviária. É sobrinho do grande cantor e violonista Caburé, e a diferença de idade entre eles não é grande, tanto que até parecem irmãos. Perguntei-lhe sobre seu tio, o último grande boêmio que conheci. Jacaré, com seu bom humor habitual, disse: “Buenão, meu tio tá fazendo hora extra na Terra, não é possível cara! O que ele já aprontou e continua vivo, não dá pra acreditar. Veja bem, na sua última internação no Hospital São Francisco, cuja causa como sempre era bebida e cigarro, o doutor, ao lhe dar alta, passou-lhe aquele sermão de padre mau humorado. Entre as proibições ditadas pelo médico estão: parar de fumar definitivamente e nunca mais colocar uma gota de álcool goela abaixo…”
Caburé pegou seus pertences, caminhou até a portaria, ligou para seu sobrinho Jacaré ir buscá-lo. O rapaz disse para ele segurar a onda que iria demorar uns 30 minutos. Caburé ficou ali na porta do hospital só no aguardo, deu uma geral no pedaço e viu um bar na esquina de baixo, o Bar do Leão. Segundo meu amigo Egito, comercialino e palmeirense de carteirinha, o estabelecimento pertenceu, no passado, ao pai do goleiro Leão, seu amigo e que jogou no Comercial e no Palmeiras.
Sabe como é a tentação… Caburé olhava pro bar e de dentro dele uma voz dizia: “Não vá até lá, veja bem o que o doutor te falou”. Mas, outra voz o atiçava: “Vai lá, uma só não vai lhe acontecer nada”. A segunda tentação foi mais forte e ele foi até a fonte de seus desejos. De cara pediu aquela “da diretoria”, e ela veio até com uma camada de gelo. Pra arrematar, um maço de cigarros.
Jacaré conta que, por conhecer bem seu tio, não estranhou o fato de encontrá-lo dentro do bar na maior felicidade. Sobre a mesa várias garrafas vazias e um cinzeiro lotado de bitucas de cigarros. Questionado pelo sobrinho, ele disse: “Jacaré, depois de 15 dias internado, tinha que comemorar minha saída em grande estilo…” E a vida seguiu.
Nos bares de Ribeirão Preto – não os badalados –, muitas vezes sentei com Caburé e dele ouvi histórias que valem a pena contar aqui. Tem uma que acho genial, e é das antigas. Conta ele que, numa véspera de Natal, estava com seu violão cantando boleros na famosa Cantina Cairo – ficava na rua Prudente de Moraes quase esquina com a Visconde de Inhaúma –, do lado um senhor se emocionava a cada música que cantava. Ele fez alguns pedidos musicais que prontamente foi atendido e, depois de horas, colocou no bolso de Caburé um cheque, dizendo que era para ele passar um Natal farto com a família.
Caburé deu uma escapadinha até o banheiro pra ver o valor do cheque, levou o maior susto e foi procurar o doador. Alcançou o cara entrando no carro e já foi dizendo: “Acho que o senhor errou o cheque, é muito dinheiro”. “Não”, respondeu o senhor, “é até pouco pela felicidade que você me proporcionou, há tempos não me sentia assim”. Desejou um Feliz Natal a Caburé e saiu. “Buenão”, disse ele, “foi meu maior cachê cantando, cara! Pra você ter uma ideia, na época dava pra comprar um Fusca zero, fui no banco descontar o cheque e o gerente andava de um lado pro outro com ele na mão, ligaram pro cara pra confirmar, depois tiveram o maior trampo pra embalar o dinheiro, um monte de sacos de papel. Naquele tempo eram notas de um cruzeiro, joguei tudo dentro do carro e saí por ai mostrando pros amigos”, diz Caburé.
“Sem saber o que fazer, decidi distribuí-lo para mendigos e quem morava na rua, e à noite fui até a marquise da rodoviária, acordava os caras, pedia pra eles me contarem suas histórias, eles choravam e eu também, deixei ali muito dinheiro. Dali andei pelas ruas fazendo o mesmo e ainda sobrou grana, fui pra zona do meretrício, pedia pra cada mulher me contar porque estavam naquela vida, a maioria dizia que o pai a expulsara de casa por perder a virgindade com o namorado. Buenão, descobri ali que não nasci pra ser rico, acabei com o dinheiro, entrei no meu velho Fusquinha, voltei feliz pra casa.” Me lembrou o velho sambista carioca Nelson Cavaquinho, que distribuía seu cachê, voltando pra casa mais duro que quando saiu.
Sexta conto mais.