Por Rodrigo Fonseca – Especial para a AE
Implacável em seus duelos contra o culto ao “macho” e à celebração da masculinidade tóxica, o que a levou a desdenhar publicamente das sequências de Brad Pitt sem camisa em um filme de Quentin Tarantino (Era Uma Vem Em Hollywood, de 2019), a cineasta Kelly Reichardt escolheu um dos filões mais açoitados pelo sexismo – o faroeste – para exercitar seu olhar autoral sobre a solidariedade, atomizando ranços da cultura americana. Embora converse com toda a tradição do Velho Oeste nas telas, First Cow, filme que vem elevando seu nome ao panteão da glória do cinema independente, parece um western às avessas, sem tiros, sem intolerâncias contra as diferenças culturais.
De novembro para cá, enquetes da crítica internacional sobre os melhores filmes de 2020 trazem a diretora de 56 anos no topo de suas listas. Inclua entre seus fãs o exigente New York Film Critics Circle, que enalteceu seu estilo minimalista. Resenhas elogiosas têm chancelado seu mais recente estudo sobre companheirismo, indicado ao Urso de Ouro da Berlinale, fevereiro passado, onde a realizadora definiu o longa-metragem como “uma história sobre amizades e sobre vacas”. História essa indicada a 48 troféus internacionais, laureada com o Prêmio do Júri no Festival de Deauville, na França, e cotadíssima a indicações ao Oscar, no dia 25 de abril, quando deve estrear comercialmente no Brasil.
“Como o western tem uma cartilha muito sedimentada, você tem a impressão de que tudo já foi dito sobre aquele universo até quando está filmando, o que torna a essencial a busca por novos ângulos, no posicionamento de câmera. Há, inegavelmente, uma recorrência de sagas de homens brancos contadas por cineastas brancos. É uma recorrência de caubóis cheios de bravura que se aventuram por terrenos inóspitos e matam indígenas. Isso sedimentou uma mitologia que se confunde com a nossa própria História”, disse Kelly ao jornal O Estado de S. Paulo na Berlinale, onde citou a atriz e cineasta Ida Lupino (1918-1995), realizadora da série O Paladino do Oeste, como uma referência de exceção na linhagem do bangue-bangue. “Eu nasci em Miami e fui buscar nesse gênero um olhar de mundo diferente do que havia na Flórida, minha terra natal. Mas quando fiz um filme chamado O Atalho, fui ler diários antigos de mulheres que participaram na conquista dos EUA e descobri pontos de vista completamente distintos sobre os mitos do Oeste. Li experiências femininas libertadoras. O que eu tento em trabalhos como First Cow é essa libertação… é buscar novas perspectivas.”
Ovacionada no Festival de Berlim pela leveza de sua movimentação de câmera e pela delicada abordagem para um ambiente tradicionalmente representado pelas vias da brutalidade, Kelly lançou, em 2013, um filme com Brasil em seu DNA, que concorreu ao Leão de Ouro de Veneza: Movimentos Noturnos, produzido pela RT Features, de Rodrigo Teixeira. Antes, em 2006, ela saiu do Festival de Roterdã, na Holanda, com o Tigre de Ouro por Antiga Alegria, no qual sedimentou sua veia de autoralidade temática: a lealdade entre amigos. Ela tem ainda uma recorrente obsessão pelo Oregon, como cenário de suas reflexões sobre o que é ser leal em situações de perigo e de tensão. Seu First Cow se passa lá também, com base no livro The Half-Life, de Jonathan Raymond, seu mais recorrente roteirista.
“O romance dele se desenrola ao longo de quatro séculos, em dois continentes diferentes. Eu resolvi pegar apenas uma seção daquela narrativa, centrada no simbolismo da imigração, quando encontrei a vaca”, disse Kelly em Berlim, referindo-se literalmente ao animal cujo leite movimenta os conflitos de seu novo e aclamado longa. “Estou falando de pessoas que vivem da terra, de recursos naturais, mas esbarram com novas práticas econômicas”.
Na trama de First Cow, o imigrante chinês King-lu (Orion Lee) estabelece uma relação de trabalho e do mais fraterno afeto com o comerciante de peles Cookie (John Magaro). Os dois passam a fazer um exótico bolinho usando o leite roubado da vaca de um inglês rico (Tony Jones). Aos poucos, o negócio deles se torna um sucesso, inaugurando um comércio dos mais rentáveis, cuja fonte ilegal nenhum dos donos de terra conhece.
“Eu sempre tento propor uma investigação da masculinidade a partir de pontos de observação que desmistifiquem lugares comuns de representação de gênero. A amizade entre homens e o Oeste são pontos que me interessavam, mas eu também queria entender a mudança histórica no século 19 em relação a novas práticas econômicas em um ambiente onde o escambo ainda predominava. Existe ali, nos idos de 1880, no Oregon, uma economia que vem explorar e mesmo extinguir os recursos naturais. Meus personagens não são pistoleiros valentes mas, sim, empreendedores que se adaptam a uma nova realidade de trabalho. Aparecem ali novas estratégias de sobrevivência. Mais do que a questão da comunhão, do apoio mútuo, interessava ali, naquele momento da História, o engenho para se adaptar aos novos padrões”, disse Kelly, que assina também a montagem do longa, despontando como uma aposta quente para láureas de melhor edição na temporada de prêmios deste primeiro trimestre. “Editando, eu trago o filme para mais perto de mim, em um lugar silencioso, onde consigo repensar as minhas escolhas.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.