Adalberto Luque
Dono de um estúdio de tatuagem e de uma oficina de costura, Ricardo Crescêncio Antônio, de 55 anos, conhecido por Ricardo Magrão, optou por empreender porque a cor de sua pele acabava sendo um obstáculo para conseguir um emprego formal nos anos 1980. Nascido e criado na Zona Leste da cidade de São Paulo, aos 14 anos se mudou com seus pais e irmãos para um conjunto habitacional.
Era a realização do sonho da casa própria para a família. Foi morar no Conjunto Habitacional José Bonifácio, em Itaquera. “Mais conhecida por Cohab II. Era longe e, quando íamos nos candidatar a uma vaga de emprego, não podíamos apresentar um comprovante de residência de onde nós morávamos. Tínhamos que arrumar um comprovante de residência de pessoas que morassem mais próximas da área central”, lembra.
Mas, além de morar longe, havia um outro componente dificultando a conquista de um cobiçado emprego de office-boy. Magrão tem a pele parda. “Sou preto. Apesar de pardo, sou preto. E quando a gente conseguia uma entrevista de emprego, era uma coisa nítida. Iam eliminando pela questão da cor. Os de pele mais negra eram dispensados logo de início. E iam clareando, até ficarem apenas os garotos brancos. Office-boy negro era coisa rara. Os meninos pretos como eu iam trabalhar vendendo coisas nos semáforos ou como ajudantes na rua 25 de Março”, revela. O mundo perdeu a chance de conhecer um office-boy preto, mas a tatuagem ganhou um renomado artista e assim Magrão segue sua vida.
Dados estarrecedores
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os registros de racismo saltaram de 1.464 casos em 2021, para 2.458, em 2022. Os registros da (antiga) injúria racial também cresceram: em 2021 foram 10.814 casos e, em 2022, 10.990.
No Estado de São Paulo, os casos de racismo aumentaram 128% entre 2019 e 2021. Os registros deste tipo de crime, entre janeiro e outubro do ano passado, também já superam a totalidade dos três anos anteriores. Os dados constam dos boletins de ocorrência registrados nas delegacias paulistas. A Polícia Civil registrou 412 ocorrências de discriminação racial, em 2019, 553 em 2020, e outras 956 no ano seguinte. Nos dez primeiros meses do ano passado, foram 964 casos relatados por vítimas, representando um registro a cada oito horas.
Em relação aos homicídios, os jovens negros estão mais suscetíveis à violência letal. A chance de um jovem negro ser assassinado é 2,7 vezes maior do que a de um jovem branco; das vítimas de intervenção policial, 75,4% das pessoas mortas entre 2017 e 2018 eram negras; dos homicídios de policiais, negros representam 34% do efetivo de policiais no Brasil e 51,7% dos policiais assassinados.
A informação é confirmada pela advogada Marina Camargo, diretora adjunta e presidente da Comissão de Igualdade Racial (CIR) da OAB Ribeirão Preto, mestranda em Direitos Coletivos e Cidadania pela Unaerp e Mestranda em Direito pela Faculdade de Direito da USP, Pós-Graduada em Criminologia pela Escola Superior de Advocacia. É também integrante da Comissão de Avaliação de Cotas Raciais em Concursos Públicos da Prefeitura de Ribeirão Preto e da Comissão de Heteroidentificação de Cotas Raciais da USP. “O racismo é um dos marcadores da desigualdade social”, lamenta.
Para ela, o Brasil ainda é um país muito racista por ter sido estruturado socioeconomicamente na exploração, desumanização e objetificação de pessoas negras. “Constatamos esta desigualdade no mercado de trabalho, nos cargos de liderança, na política, no meio acadêmico, no acesso à justiça e saúde, nas estatísticas sobre violências (obstétrica, doméstica, sexual, policial, religiosa), nos bairros, entre outros. Portanto, não basta a nossa miscigenação por si só, é indispensável a adoção de condutas individuais e coletivas antirracistas através da educação, da elaboração e aplicação de políticas públicas e ações afirmativas, da representatividade para obtenção de espaços plurais, entre outras ações, por parte de toda a população, não somente a negra. A luta é diária, constante e conjunta”, diz.
Subnotificação
De acordo com Marina, há uma subnotificação dos registros criminais de racismo. E por vários motivos. Seja por parte dos próprios estados, que não realizam pesquisas ou não enviam dados para o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, um dos maiores aglutinadores de dados sobre a violência no Brasil.
Ou também pela própria vítima do racismo. “Pela não identificação propriamente do crime (muitas pessoas não identificam que aquele comportamento foi discriminatório/criminoso); pela relativização das ofensas (muitos preferem não registrar o boletim de ocorrência pensando que, por exemplo, aquela atitude poderia ser uma simples brincadeira, e não um racismo recreativo); pelo temor de perseguição (muitos não registram a ocorrência por medo de ser novamente vitimizado por parte do ofensor criminoso ou de pessoas que compartilham de sua conduta criminosa); pelo desencorajamento; pelo estímulo à troca de tipificação do crime nas delegacias de polícia”, acrescenta Marina.
A presidente da CIR da OAB Ribeirão Preto observa que um dos mecanismos para mudar a realidade foi a recente alteração na Lei dos Crimes Raciais, com o advento de uma lei que equipara o crime de injúria racial ao crime de racismo, aumentando a pena de reclusão, com agravantes, como por exemplo, as penas serem aumentadas em até 50% quando ocorrerem em contexto ou com intuito de “descontração, diversão ou recreação” e também se o crime for cometido por funcionário público ou por intermédio de redes sociais. “O aumento da severidade das punições é necessário para que o crime de racismo seja, culturalmente, considerado grave”, defende Marina.
Internet
O crime de discriminação racial também é muito presente na internet, mas, segundo a advogada, não é levado tão a sério pela população como são os crimes de racismo fora do ambiente virtual. Um dos motivos é o fato de criminosos usarem perfis falsos, dificultando suas identificações.
“O próprio algoritmo nos prova que o racismo também está presente nas redes. Até alguns anos atrás, pesquisávamos no Google ‘cabelo feio’ ou ‘tranças feias’ e apareciam mulheres e homens negros com seus cabelos crespos soltos, penteados ou trançados. Após muitas denúncias, a ferramenta alterou seu algoritmo. A exemplo também do Instagram que utiliza filtros que afastam características físicas de pessoas negras, como filtros que afinam nariz, clareiam a pele, reforçando estereótipos discriminatórios de beleza. Não somente nestas ferramentas, a discriminação algorítmica está presente em todos os espaços virtuais”, aponta.
Mas no ambiente cotidiano, o racismo ocorre até mesmo em locais destinados à inclusão social. Em seu trabalho pela CIR da OAB Ribeirão Preto, Marina se deparou com casos de professores de ensino fundamental II e universitários que praticaram racismo contra os próprios alunos.
Segundo Marina, a chance de um jovem negro ser assassinado é 2,7 vezes maior do que a de um jovem branco.
Dados da violência racial
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, a violência letal registrou, na última década, que 408.605 pessoas negras foram assassinadas, 72% do total de casos. Isso significa que, a cada 100 pessoas assassinadas, 72 são negras. Em 2021, 62% das vítimas de feminicídio eram mulheres negras. E 70,7% das vítimas das demais mortes violentas intencionais também.
Entre as vítimas de estupro e estupro de vulnerável, 52,2% são negras. A população prisional no país é majoritariamente negra. De acordo com o anuário, pessoas negras representavam 67,5% da população carcerária em 2021.
“Esse elevado número de violência sofrida pela mulher negra é justificado pela intersecção do machismo e racismo, isto é, a sobreposição de opressões e discriminações existentes na sociedade, além de outros fatores que podem atingi-la individualmente.”
Apoio
Várias entidades desenvolvem programas de acolhimento e de combate à discriminação racial e de gênero em Ribeirão Preto. Casos da Vitória Régia, Casa da Mulher, União das Pretas, Projeto Efêmera, Programa Mãos Estendidas, Arco-Íris, entre outras organizações.
Um desses órgãos que se destacam na cidade é o Centro Cultural Orùnmilá, criado em Ribeirão Preto no ano de 1994, a partir da compreensão da necessidade de preservação e promoção da cultura negra. No local onde hoje está instalado já funcionava desde 1984 a comunidade tradicional de matriz africana “Egbe Awo Ase Iya Mesan Orun”.
“A necessidade de criação de um instrumento de combate ao racismo e valorização das populações afro-periféricas, motivou a crescente ampliação das atividades desenvolvidas, o que resultou na formação do Centro Cultural Orùnmilá, que agrega pessoas da comunidade, da cidade e da região, num conjunto de atividades de promoção cultural e cidadã para todo o município, realizando cursos gratuitos sobre cultura africana (capoeira, percussão, dança africana, entre outros). “Essas ações têm por finalidade garantir a potencialização do impacto na formação cultural da região, pois descentraliza formação cultural, agrega valores à comunidade e colabora para a construção da identidade e do indivíduo, despertando a autonomia da população”, explica Renata Sangoranti, advogada, produtora cultural e presidente do Centro Cultural Orùnmilá.
Segundo ela, o racismo ocorre em todas as instâncias. “O racismo brasileiro e por consequência o ribeirão-pretano é o mais bem elaborado do mundo, o que faz crer – erroneamente – que se você seguir tudo que o sistema branco mandar, ele (o racismo) pode ser superado. Esse é um diferencial do racismo norte-americano, em que não teve um apartheid velado como aqui. Ribeirão Preto é uma cidade apartada. Existe nitidamente a Ribeirão Preto e a Ribeirão dos pretos”, denuncia.
Como forma de combater o racismo e valorizar as raízes negras, o Orùnmilá trabalha com grupos e artistas diversos que utilizam a estrutura disponibilizada para realizar atividades como oficinas de capoeira, hip hop, sarau, dança afro, percussão, maracatu, escolas de samba, afoxé, compositores e cantores, entre outras.
“Temos um calendário anual com eixo formativo composto por mais de 20 oficinas, cursos e bate papos, que visam estimular o pensamento crítico, bem como a identificação cultural da população. As oficinas e cursos que são oferecidas gratuitamente à população são de culinária tradicional africana, oficina de introdução à cultura e língua yorubá, oficina literária e clube de leitura, oficina de dança afro, oficina de auto retrato para crianças, percussão, capoeira, capoeira só para mulheres, maracatu, maracatu só para mulheres, oficina de fotografia, oficina de construção de instrumentos, oficina de cabelo afro e autocuidado, roda de conversa sobe o tema ‘nascer no Brasil’, oficina de folhas sagradas, oficina de literatura negra, oficina de audiovisual, oficina de violão, oficina de produção musical, roda de conversas e reflexões sobre o Dia Internacional da Mulher Negra, Latina e Caribenha e curso sobre legislação e racismo”, conta Renata.
Vítimas de racismo
Para acolhimento a pessoas vítimas de racismo, Renata atua como advogada buscando a garantia de direito para todos e todas, como prevê a Constituição. “Em especial, contribuindo para ações de enfrentamento ao racismo. Nossa assessoria sempre teve como uma de suas metas, viabilizar as comunidades tradicionais de matriz africana em Ribeirão Preto e região, combatendo o racismo em suas diversas camadas, promovendo levantamento/mapeamento e orientando os responsáveis pelas comunidades com relação à legislação vigente”, detalha.
O objetivo, segundo Renata, é desenhar uma forma de intervenção, considerando as peculiaridades e complexidade das comunidades de matriz africana dentro de seus espaços. O trabalho também pretende contribuir com o avanço dos direitos dos povos que descendem da África, que ao longo do processo histórico e político no Brasil, foram colocados à margem da garantia dos direitos, sendo muitas vezes perseguidos e cerceados em realizar suas mais variadas expressões.
“A luta contra o racismo deve ser uma luta que eu gostaria de ver sendo incorporada pela sociedade como um todo. Militamos sempre em contato com os movimentos sociais, mas você não vê os movimentos sociais incorporando essa questão. Existe a luta pela terra, pelo meio ambiente, mas a questão racial não perpassa a discussão dentro desses. Deixo como mensagem o engajamento de toda a sociedade nesta causa. Somos a maioria da população e lutamos para sermos tão humanos quanto os outros”, conclui.
Os contatos com o Centro Cultural Orùnmilá podem ser feitos por WhatsApp, através do telefone (16) 99192-6360. As redes sociais Instagram e Facebook também têm páginas com informações.
Havendo essa consciência verdadeira, pode ser que, um dia, as novas gerações não precisem se submeter a comprovantes de residência para omitir que um candidato a emprego é morador de uma periferia ou comunidade. E que não excluam do mercado formal pessoas como Ricardo Magrão, (sua história foi contada no início da reportagem), que graças a seu talento, sobreviveu no mercado informal destacando-se como tatuador e conseguiu seguir em frente.