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Atos racistas podem mudar o rumo de uma vida

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Adalberto Luque

Dono de um estúdio de tatuagem e de uma oficina de costura, Ricardo Crescêncio Antônio, de 55 anos, conhe­cido por Ricardo Magrão, op­tou por empreender porque a cor de sua pele acabava sendo um obstáculo para conseguir um emprego formal nos anos 1980. Nascido e criado na Zona Leste da cidade de São Paulo, aos 14 anos se mudou com seus pais e irmãos para um conjunto habitacional.

Era a realização do sonho da casa própria para a família. Foi morar no Conjunto Ha­bitacional José Bonifácio, em Itaquera. “Mais conhecida por Cohab II. Era longe e, quando íamos nos candidatar a uma vaga de emprego, não podía­mos apresentar um compro­vante de residência de onde nós morávamos. Tínhamos que arrumar um comprovante de residência de pessoas que morassem mais próximas da área central”, lembra.

No Brasil, 72% das vítimas de homicídio e 62% das vítimas de feminicídio são pessoas negras e muitos criminosos se escondem na subnotificação de casos

Mas, além de morar longe, havia um outro componente dificultando a conquista de um cobiçado emprego de office­-boy. Magrão tem a pele parda. “Sou preto. Apesar de pardo, sou preto. E quando a gente conseguia uma entrevista de emprego, era uma coisa nítida. Iam eliminando pela questão da cor. Os de pele mais negra eram dispensados logo de iní­cio. E iam clareando, até fica­rem apenas os garotos brancos. Office-boy negro era coisa rara. Os meninos pretos como eu iam trabalhar vendendo coisas nos semáforos ou como aju­dantes na rua 25 de Março”, re­vela. O mundo perdeu a chan­ce de conhecer um office-boy preto, mas a tatuagem ganhou um renomado artista e assim Magrão segue sua vida.

Ricardo Magrão: “no processo seletivo, os de pele mais negra eram dispensados logo de início, clareando os candidatos até ficarem apenas os garotos brancos”

Dados estarrecedores
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os registros de racismo saltaram de 1.464 casos em 2021, para 2.458, em 2022. Os registros da (antiga) injúria racial também cresce­ram: em 2021 foram 10.814 ca­sos e, em 2022, 10.990.

No Estado de São Paulo, os casos de racismo aumentaram 128% entre 2019 e 2021. Os registros deste tipo de crime, entre janeiro e outubro do ano passado, também já superam a totalidade dos três anos an­teriores. Os dados constam dos boletins de ocorrência re­gistrados nas delegacias pau­listas. A Polícia Civil registrou 412 ocorrências de discrimi­nação racial, em 2019, 553 em 2020, e outras 956 no ano se­guinte. Nos dez primeiros me­ses do ano passado, foram 964 casos relatados por vítimas, representando um registro a cada oito horas.

Em relação aos homicí­dios, os jovens negros estão mais suscetíveis à violência letal. A chance de um jovem negro ser assassinado é 2,7 vezes maior do que a de um jovem branco; das vítimas de intervenção policial, 75,4% das pessoas mortas entre 2017 e 2018 eram negras; dos ho­micídios de policiais, negros representam 34% do efetivo de policiais no Brasil e 51,7% dos policiais assassinados.

A informação é confirmada pela advogada Marina Camar­go, diretora adjunta e presiden­te da Comissão de Igualdade Racial (CIR) da OAB Ribeirão Preto, mestranda em Direitos Coletivos e Cidadania pela Unaerp e Mestranda em Direi­to pela Faculdade de Direito da USP, Pós-Graduada em Crimi­nologia pela Escola Superior de Advocacia. É também inte­grante da Comissão de Avalia­ção de Cotas Raciais em Con­cursos Públicos da Prefeitura de Ribeirão Preto e da Comis­são de Heteroidentificação de Cotas Raciais da USP. “O ra­cismo é um dos marcadores da desigualdade social”, lamenta.

Para ela, o Brasil ainda é um país muito racista por ter sido estruturado socioecono­micamente na exploração, de­sumanização e objetificação de pessoas negras. “Constatamos esta desigualdade no mercado de trabalho, nos cargos de li­derança, na política, no meio acadêmico, no acesso à justiça e saúde, nas estatísticas sobre violências (obstétrica, domés­tica, sexual, policial, religio­sa), nos bairros, entre outros. Portanto, não basta a nossa miscigenação por si só, é indis­pensável a adoção de condutas individuais e coletivas antirra­cistas através da educação, da elaboração e aplicação de polí­ticas públicas e ações afirmati­vas, da representatividade para obtenção de espaços plurais, entre outras ações, por parte de toda a população, não somente a negra. A luta é diária, cons­tante e conjunta”, diz.

Subnotificação
De acordo com Marina, há uma subnotificação dos regis­tros criminais de racismo. E por vários motivos. Seja por parte dos próprios estados, que não realizam pesquisas ou não enviam dados para o Anuário Brasileiro de Segurança Públi­ca, um dos maiores aglutina­dores de dados sobre a violên­cia no Brasil.

Ou também pela própria ví­tima do racismo. “Pela não iden­tificação propriamente do crime (muitas pessoas não identi­ficam que aquele comporta­mento foi discriminatório/cri­minoso); pela relativização das ofensas (muitos preferem não registrar o boletim de ocorrên­cia pensando que, por exemplo, aquela atitude poderia ser uma simples brincadeira, e não um racismo recreativo); pelo temor de perseguição (muitos não re­gistram a ocorrência por medo de ser novamente vitimizado por parte do ofensor crimino­so ou de pessoas que compar­tilham de sua conduta crimi­nosa); pelo desencorajamento; pelo estímulo à troca de tipifi­cação do crime nas delegacias de polícia”, acrescenta Marina.

Segundo Marina, a chance de um jovem negro ser assassinado é 2,7 vezes maior do que a de um jovem branco

A presidente da CIR da OAB Ribeirão Preto observa que um dos mecanismos para mudar a realidade foi a recen­te alteração na Lei dos Crimes Raciais, com o advento de uma lei que equipara o crime de in­júria racial ao crime de racis­mo, aumentando a pena de re­clusão, com agravantes, como por exemplo, as penas serem aumentadas em até 50% quan­do ocorrerem em contexto ou com intuito de “descontração, diversão ou recreação” e tam­bém se o crime for cometido por funcionário público ou por intermédio de redes sociais. “O aumento da severidade das pu­nições é necessário para que o crime de racismo seja, cultu­ralmente, considerado grave”, defende Marina.

Internet
O crime de discriminação racial também é muito presen­te na internet, mas, segundo a advogada, não é levado tão a sério pela população como são os crimes de racismo fora do ambiente virtual. Um dos motivos é o fato de criminosos usarem perfis falsos, dificul­tando suas identificações.

“O próprio algoritmo nos prova que o racismo também está presente nas redes. Até alguns anos atrás, pesquisá­vamos no Google ‘cabelo feio’ ou ‘tranças feias’ e apareciam mulheres e homens negros com seus cabelos crespos sol­tos, penteados ou trançados. Após muitas denúncias, a fer­ramenta alterou seu algoritmo. A exemplo também do Ins­tagram que utiliza filtros que afastam características físicas de pessoas negras, como filtros que afinam nariz, clareiam a pele, reforçando estereótipos discriminatórios de beleza. Não somente nestas ferramen­tas, a discriminação algorítmi­ca está presente em todos os espaços virtuais”, aponta.

Mas no ambiente cotidia­no, o racismo ocorre até mes­mo em locais destinados à in­clusão social. Em seu trabalho pela CIR da OAB Ribeirão Preto, Marina se deparou com casos de professores de ensino fundamental II e universitários que praticaram racismo contra os próprios alunos.

Segundo Marina, a chance de um jovem negro ser assassinado é 2,7 vezes maior do que a de um jovem branco.

Renata, do Orùnmilá: “existe nitidamente a Ribeirão Preto e a Ribeirão dos pretos”

Dados da violência racial
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Públi­ca de 2023, a violência letal re­gistrou, na última década, que 408.605 pessoas negras foram assassinadas, 72% do total de casos. Isso significa que, a cada 100 pessoas assassinadas, 72 são negras. Em 2021, 62% das vítimas de feminicídio eram mulheres negras. E 70,7% das vítimas das demais mortes vio­lentas intencionais também.

Entre as vítimas de estupro e estupro de vulnerável, 52,2% são negras. A população pri­sional no país é majoritaria­mente negra. De acordo com o anuário, pessoas negras repre­sentavam 67,5% da população carcerária em 2021.

“Esse elevado número de violência sofrida pela mulher negra é justificado pela inter­secção do machismo e racis­mo, isto é, a sobreposição de opressões e discriminações existentes na sociedade, além de outros fatores que podem atingi-la individualmente.”

Apoio
Várias entidades desenvol­vem programas de acolhimento e de combate à discriminação racial e de gênero em Ribeirão Preto. Casos da Vitória Régia, Casa da Mulher, União das Pre­tas, Projeto Efêmera, Programa Mãos Estendidas, Arco-Íris, en­tre outras organizações.

Um desses órgãos que se destacam na cidade é o Cen­tro Cultural Orùnmilá, criado em Ribeirão Preto no ano de 1994, a partir da compreensão da necessidade de preservação e promoção da cultura negra. No local onde hoje está insta­lado já funcionava desde 1984 a comunidade tradicional de matriz africana “Egbe Awo Ase Iya Mesan Orun”.

“A necessidade de criação de um instrumento de combate ao racismo e valorização das po­pulações afro-periféricas, mo­tivou a crescente ampliação das atividades desenvolvidas, o que resultou na formação do Centro Cultural Orùnmilá, que agrega pessoas da comunidade, da ci­dade e da região, num conjunto de atividades de promoção cul­tural e cidadã para todo o muni­cípio, realizando cursos gratuitos sobre cultura africana (capoeira, percussão, dança africana, entre outros). “Essas ações têm por finalidade garantir a potenciali­zação do impacto na formação cultural da região, pois descen­traliza formação cultural, agrega valores à comunidade e colabora para a construção da identidade e do indivíduo, despertando a autonomia da população”, expli­ca Renata Sangoranti, advogada, produtora cultural e presidente do Centro Cultural Orùnmilá.

Segundo ela, o racismo ocorre em todas as instâncias. “O racismo brasileiro e por con­sequência o ribeirão-pretano é o mais bem elaborado do mundo, o que faz crer – erroneamente – que se você seguir tudo que o sistema branco mandar, ele (o racismo) pode ser superado. Esse é um diferencial do racismo norte-americano, em que não teve um apartheid velado como aqui. Ribeirão Preto é uma cida­de apartada. Existe nitidamente a Ribeirão Preto e a Ribeirão dos pretos”, denuncia.

Como forma de combater o racismo e valorizar as raízes ne­gras, o Orùnmilá trabalha com grupos e artistas diversos que utilizam a estrutura disponibi­lizada para realizar atividades como oficinas de capoeira, hip hop, sarau, dança afro, percus­são, maracatu, escolas de sam­ba, afoxé, compositores e canto­res, entre outras.

“Temos um calendário anu­al com eixo formativo com­posto por mais de 20 oficinas, cursos e bate papos, que visam estimular o pensamento crítico, bem como a identificação cul­tural da população. As oficinas e cursos que são oferecidas gra­tuitamente à população são de culinária tradicional africana, oficina de introdução à cultura e língua yorubá, oficina literá­ria e clube de leitura, oficina de dança afro, oficina de auto re­trato para crianças, percussão, capoeira, capoeira só para mu­lheres, maracatu, maracatu só para mulheres, oficina de foto­grafia, oficina de construção de instrumentos, oficina de cabelo afro e autocuidado, roda de conversa sobe o tema ‘nascer no Brasil’, oficina de folhas sagra­das, oficina de literatura negra, oficina de audiovisual, oficina de violão, oficina de produção musical, roda de conversas e reflexões sobre o Dia Interna­cional da Mulher Negra, Latina e Caribenha e curso sobre legis­lação e racismo”, conta Renata.

O Centro Cultural Orùnmilá realiza cursos gratuitos sobre cultura africana, como capoeira, percussão, dança africana, entre outros

Vítimas de racismo
Para acolhimento a pessoas vítimas de racismo, Renata atua como advogada buscando a ga­rantia de direito para todos e to­das, como prevê a Constituição. “Em especial, contribuindo para ações de enfrentamento ao ra­cismo. Nossa assessoria sempre teve como uma de suas metas, viabilizar as comunidades tradi­cionais de matriz africana em Ribeirão Preto e região, com­batendo o racismo em suas di­versas camadas, promovendo levantamento/mapeamento e orientando os responsáveis pe­las comunidades com relação à legislação vigente”, detalha.

O objetivo, segundo Rena­ta, é desenhar uma forma de intervenção, considerando as peculiaridades e complexida­de das comunidades de matriz africana dentro de seus espaços. O trabalho também pretende contribuir com o avanço dos direitos dos povos que descen­dem da África, que ao longo do processo histórico e político no Brasil, foram colocados à mar­gem da garantia dos direitos, sendo muitas vezes persegui­dos e cerceados em realizar suas mais variadas expressões.

“A luta contra o racismo deve ser uma luta que eu gostaria de ver sendo incorporada pela so­ciedade como um todo. Milita­mos sempre em contato com os movimentos sociais, mas você não vê os movimentos sociais incorporando essa questão. Existe a luta pela terra, pelo meio ambiente, mas a questão racial não perpassa a discussão dentro desses. Deixo como mensagem o engajamento de toda a socie­dade nesta causa. Somos a maio­ria da população e lutamos para sermos tão humanos quanto os outros”, conclui.

Os contatos com o Centro Cultural Orùnmilá podem ser feitos por WhatsApp, através do telefone (16) 99192-6360. As redes sociais Instagram e Facebook também têm pági­nas com informações.

Havendo essa consciência verdadeira, pode ser que, um dia, as novas gerações não precisem se submeter a comprovantes de residência para omitir que um candidato a emprego é morador de uma periferia ou comunidade. E que não excluam do mercado formal pessoas como Ricardo Magrão, (sua história foi conta­da no início da reportagem), que graças a seu talento, sobreviveu no mercado informal destacan­do-se como tatuador e conse­guiu seguir em frente.

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