Tribuna Ribeirão
Cultura

Atento observador do universo latino-americano, Eduardo Galeano faria 80 anos

Por Eric Nepomuceno, especial para o Estadão

Se não tivesse cometido a indelicadeza extrema de partir em sua única viagem sem volta em 13 de abril de 2015, o escritor uruguaio Eduardo Galeano estaria fazendo 80 anos neste 3 de setembro.

Teria visto, por exemplo, o lançamento, um ano depois da sua partida, do derradeiro livro que escreveu: O Caçador de Histórias, que tomou seu tempo entre 2012 e 2013. As revisões terminaram no ano seguinte, e os originais foram mandados para o editor no fim de 2014. E com certeza estaria trabalhando em algum projeto novo.

Há, neste livro derradeiro, joias bem lapidadas e certamente uma amostra concreta do humor que ele manteve até o fim, mesmo quando já estava bastante combalido pelo câncer de pulmão que o levaria para sempre.

Esse pequeno texto se chama Autobiografia Completíssima, e diz assim:

“Nasci no dia 3 de setembro de 1940, quando Hitler devorava meia Europa e o mundo não esperava nada de bom.

Desde que eu era muito pequeno, tive uma grande facilidade para cometer erros. De tanto dar mancada, acabei demonstrando que ia deixar profunda marca da minha passagem pelo mundo.

Com a sadia intenção de marcar ainda mais fundo, virei escritor, ou tentei virar.

Meus trabalhos de maior êxito são três artigos que circulam com meu nome pela internet. As pessoas me param na rua, para me cumprimentar, e cada vez que isso acontece me lanço a desfolhar a margarida:

– Me mato, não me mato, me mato…

Nenhum desses três artigos foi escrito por mim.”

Não, esses artigos não. Mas do que Galeano sim escreveu, e foram mais de dúzia e meia de livros, alguns se tornaram indispensáveis e fizeram dele um dos autores latino-americanos não apenas mais lidos como dos mais admirados mundo afora.

Da geração posterior à que, nos anos 1960, levou o que se escreve em nossas comarcas (o mexicano Carlos Fuentes, o peruano Mario Vargas Llosa, o argentino Julio Cortázar e o colombiano Gabriel García Márquez), Eduardo Galeano foi, sem dúvida, o mais consolidado.

Seu As Veias Abertas da América Latina, publicado em 1971 no Uruguai, teve uma estreia um tanto tímida. Dois anos depois, porém, passou por uma explosão de êxito que em boa parte se mantém até hoje.

É verdade que, em 2012, Galeano de certa forma criticou o livro. Dizia que naquela altura não escreveria o que escreveu.

Trata-se, em todo caso, da típica rejeição de autor de obra variada e diversa que procura se livrar do peso de um determinado e fulminante êxito. Algo parecido ao que fez Gabriel García Márquez com relação ao seu Cem Anos de Solidão.

Há, na literatura de Galeano, uma clara ruptura de águas: Dias e Noites de Amor e de Guerra, de 1978. Se até ali seus livros se dividiam de maneira formal e clara entre a literatura de ficção (seus contos de Vagamundo são especialmente bem escritos e por isso mesmo duradouros) e o jornalismo (Guatemala, um País Ocupado) e o ensaio jornalístico (As Veias Abertas, como melhor exemplo), em Dias e Noites, ele abre fronteiras e escorraça limites entre formas. Há anotações como as de um diário, há reportagem, há histórias inventadas. E dali em diante, sua obra ganharia e estabeleceria um estilo único.

Quatro anos depois chegava às livrarias o resultado de anos de pesquisa acurada: o primeiro volume da trilogia Memória do Fogo, e que se chama Os Nascimentos.

Nesse livro, Galeano conta a história da América Latina desde a criação do universo segundo as lendas indígenas, e vai até o ano de 1700.

O segundo, As Caras e as Máscaras, se estende até 1901. O volume final, O Século do Vento, termina em 1984, ano em que ele retornou a Montevidéu depois de um exílio iniciado em junho de 1973, primeiro em Buenos Aires e desde 1976 na Catalunha espanhola.

O mais impactante nessa trilogia é que a visão imensa e as histórias grandiloquentes são narradas por personagens secundários. Justamente aqueles que tiveram participação essencial ou olhares reveladores sobre a realidade e ficam sempre à sombra dos heróis, que sem eles não teriam feito o que os glorificou.

A trilogia elevou o nome de Galeano a outro patamar, consolidando um prestígio que já não dependia apenas de As Veias Abertas. Aliás, qualquer comparação entre a trilogia e o livro que o tornou popular seria absolutamente injusta.

Ele teve tempo ainda de lapidar outras pequenas (e grandes) joias esculpidas com precisão de mestre-maior, como O Livro dos Abraços, Palavras Andantes, Bocas do Tempo, Espelhos ou Os Filhos dos Dias.

O livro que ele não viu publicado, porém, é talvez o melhor retrato não apenas de tudo que ele escreveu, mas do próprio Galeano.

Como disse uma vez um jornalista espanhol ao comentar sua obra, Galeano tinha um olho no microscópio e o outro, no telescópio.

Soube, como pouquíssimos artistas, descobrir maravilhas em coisas ínfimas sem perder de vista as grandiosidades da vida.

Hoje, ele faria 80 anos. O que diria do que acontece no mundo e, muito especialmente, aqui no Brasil, país que ele amava como uma espécie de segunda pátria?

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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