Gosto de ler e viajar nas histórias dos grandes compositores brasileiros que povoam meu imaginário. Veja o exemplo de Noel Rosa: o que o sambista de Vila Isabel aprontou no pouco tempo em que ficou na terra é incrível. Apesa de boêmio, ele foi embora cedo, com apenas 26 anos, deixando uma obra de se admirar. Lembro-me de um samba que João Nogueira musicou a partir de uma carta que Noel Rosa escreveu para seu médico quando estava internado, em Belo Horizonte (MG), tratando da tuberculose que o matou. Pena que este lado cultural da nossa MPB não tenha divulgação.
Outro bamba que deixou marcas foi Ary Barroso. Compositor, radialista, músico e outras cositas más, o mineiro de Ubá fazia e acontecia na sua época, era Flamengo roxo e como também era locutor esportivo, quando seu time sofria um gol, ele não gritava como todos fazem, ele simplesmente dizia: “Iiiihh, gol dos caras!” Sua paixão pelo Mengo estava estampada em seu rosto. Ah, como eu gostaria de ter vivido naquela época. Quem sabe meu espírito já circulava entre eles (risos). Quando Ary se mandou, eu tinha 16 anos.
Já faz alguns anos, o Sesc me contratou para fazer um show em que deveria cantar canções dos anos 1940 e 50. Achei que não tinha repertório para uma hora de show com músicas desta época, daí o gerente me disse: “Buenão, já o vi cantando muita coisa daquele tempo.” Dei uma geral no que canto e pude perceber que as canções mais lindas que interpretava eram justamente as que eles pediram.
Animado, fui pro show e cantei várias de Ary Barroso. Por exemplo: “Na baixa do sapateiro” (1938), “Pra machucar meu coração” (1943) – que eu adoro, tanto a música quanto a letra – e “Risque” (1952). Ary lutou muito por esta música, pois queriam transformá-la em bolero e ele dizia: “É samba e fim de papo”. Tentaram harmonizá-la com acordes americanos que influenciavam muito nossa música à época, assustando nossos compositores. Gosto muito de cantá-la também.
Outra dele que cantei foi “Aquarela do Brasil” – Walt Disney se encantou com esta obra do compositor brasileiro e decidiu usá-la num filme. A televisão ainda não havia chegado no Brasil e o rádio era o palco onde nossos cantores mostravam sua arte. Numa bela sacada, Ary Barroso criou o “Calouros em desfile”, um programa para dar oportunidade a novos talentos.
Ary não tinha paciência quando alguém pisava na bola. Certo dia, anunciou um candidato e perguntou ao cara o que ele ia cantar. O moço ali, todo alegre, disse: “Se todas fossem iguais a você”, de Vinicius de Morais. Ary arregalou os olhos, ele não admitia omitir os compositores e Tom Jobim foi parceiro de Vinicius nesta música. Foi logo enquadrando o cantor: “E o Tom?”, perguntou Ary, e o sujeito respondeu sem pestanejar: “Lá menor”. O apresentador quase desmaiou, mas já se refazendo mandou esta pérola: “Está desclassificado, esquecer o nome do Tom Jobim é crime”.
A outro calouro, Ary perguntou de onde ele era. Para provocar o apresentador, disse: “Nasci no Rio, seu Ary, sou ‘fluminense’”. Sabia que Ary era Flamengo e quis tirar uma onda, mas o apresentador ficou uma fera e perguntou o que iria cantar. O cara disse: “Um sambinha”. Pronto. Ary, mais nervoso ainda, mandou essa: “Se fosse um mambo, seria mambo, se fosse um bolero, seria um bolero. Pois bem, que ‘sambinha’ o senhor vai cantar?”
O cantor, na maior inocência, disse: “Aquarela do Brasil”! Quase deu um troço no Ary, autor do samba, que resolveu levar o “causo” em frente, a orquestra fez a introdução e o sujeito soltou o gogó: “Brasil, meu Brasil brasileiro, meu mulato inzoneiro, vou cantar-te nos meus velsos”. Era o que Ary esperava. Gongou o cara e disse: “O senhor pode cantar nos seus velsos, mas nos meus verrrrrrrsos, não! Vá aprender português. E ‘sambinha’ é o diabo que o carregue”.
Sexta conto mais.