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António Damásio e o cérebro que criou o homem

Do neurocientista português António Damásio, “E o cérebro criou o homem” é um livro que ilustra o desejo de Damásio de estudar a origem do “self” e o caminho percorrido por essa entidade dentro do cérebro. De acordo com o divulgado pelo autor, a consciência, mente dotada de identidade própria, é a responsável por todas as faculdades do cérebro, com exceção da capacidade deste em identificar um corpo como sendo único, nosso e de mais ninguém, capacidade esta pelo cientista chamada de “self” (ego; eu), que nos possibilita reconhecermo-nos a nós mesmos. Discussão, portanto, do que é abs­trato, quase metafísico, tema caro a escritores, filósofos e pensadores, a obra promove um diálogo com o pensador e o filósofo norte-americano William James, pai do Pragmatismo Americano, ressaltando a fala deste sobre a importância do sentimento para delimitar aquilo que é, ou não, próprio do self, ou seja, “O sentimento, diz Damásio, funciona como um marcador so­mático que, ao se juntar ao fluxo mental e se justapor ao estímulo que o desencadeou, permite que o sujeito reconheça aquela emoção como parte de sua individualidade – de seu ‘eu’”.

No relato, a busca pela ocorrência da primeira fagulha do self no cérebro, bem como, em que local deste isso se daria e “em que momento a consciência – mente + self – se torna necessária para o ser humano” orientam a discussão damasiana acerca da investigação evolutiva dos processos mentais, concluindo que “a consciência é uma necessidade evolutiva, pois somente com a aparição do self – da mente consciente – seria possível ter bases para construir e fazer surgir memórias amplas, raciocínio, imaginação, criatividade e linguagem. Sem esses instrumentos, não existiria a cultura e, sem cultura, o homem não evoluiria até aqui”. Admitindo, portanto, que “a cultura é o lugar em que não somos inteiramente regulados pela nossa biologia”, sua reflexão orienta o leitor à conclusão de que é esta cultura exter­na que, voltando-se para o homem, é capaz de mudar o modo como o self mais primitivo seja forjado. Neste contexto, “Onde no cérebro, afinal, está esse self?”. Muitos cientistas, dentre os quais ele mesmo já se incluíra, acreditavam que o self estaria no córtex cerebral, camada mais externa do cérebro, rica em neurônios e responsável pelas atividades mais complexas, como memória, interpretação e raciocínios simbólicos. Entretanto, nesta nova obra, reflexões teóricas e imagens do crânio humano, obtidas através de ressonância magnética, orientam-no a defender que o self ’nasce’ em uma região mais primitiva do cérebro: o tronco cerebral, responsável pela regulação das funções do interior do corpo, como frequência cardíaca, pressão arterial e movimentos dos músculos involuntários.

Região intimamente ligada ao corpo, responsável pelo funcionamento deste, o tronco cerebral é, então, admitido pelo autor como a primeira base para o cérebro fazer mapas neurais dos sentimentos que no homem se propagam todos os dias e que não fazem parte de uma consciência ampliada, os quais dialogam o tempo todo com as camadas mais sofisticadas do cérebro, “servindo como primeiro modelo de mapa neural e, também, alimentando-se do que as camadas mais sofisticadas apreendem dos estímulos do exterior”. Não agindo sozinho em sua autorregulação, o funcionamento do corpo, na reflexão de Damásio, sofreria interferência dos preconceitos, raciocínio, imaginação e “tudo o que é próprio das instâncias mais sofistica­das do cérebro”, o que o leva a afirmar, “Quando percebemos a beleza dessa vida nos pormenores mais pequenos, e também no grande alcance dos grandes sistemas, passamos a ter muito mais respeito por aquilo que é a vida”.

Damásio, assim como o neurologista britânico Oliver Sacks e os neurocientistas brasileiros Roberto Lent, Suzana Herculano e Miguel Nicolelis, têm sido os estudiosos do cérebro que, entendendo a importância de divulgar a ciência de modo menos complexo ao público não especializado, formam um grupo seleto que merece ter seus trabalhos divulgados na mídia. Um trecho da obra? “Acordar significou ter de volta minha mente, que estivera temporariamente ausente, agora comigo nela, cônscio tanto da propriedade (a mente) como do proprietário (eu). Acordar permitiu-me reaparecer e inspecionar meus domínios mentais, a projeção, em uma tela do tamanho do céu, de um filme mágico, um misto de documentário e ficção, que também conhecemos pelo nome de mente humana consciente. Todos temos livre acesso à consciência.
Ela borbulha com tanta facilidade e abundância na mente que permitimos, sem hesitação ou apreensão, que se desligue toda noite quando adormecemos e retorne de manhã ao soar do despertador, no míni­mo 365 vezes por ano, sem contar as sestas. E no entanto poucas coisas em nós são tão sensacionais, fundamentais e aparentemente misteriosas como a consciência. Sem a consciência — isto é, sem uma mente dotada de subjetividade —, você não teria como saber que existe, quanto mais saber quem você é e o que pensa. Se a subjetividade não tivesse surgido, ainda que bastante modesta no início, em seres vivos bem mais simples do que nós, provavelmente a memó­ria e o raciocínio não teriam logrado uma expansão tão prodigiosa, e o caminho evolucionário para a linguagem e a elaborada versão humana de consciência que hoje possuímos não teriam sido abertos. A criatividade não teria flores­cido. Não existiriam a música, a pintura, a literatura. O amor nunca seria amor, apenas sexo. A amizade seria apenas uma cooperação conveniente. A dor nunca se tornaria sofrimento, o que não lamentaríamos, mas a contrapartida dessa dúbia vantagem seria que o prazer nunca se tornaria alegria. Sem o revolucionário surgimento da subjetividade, não existiria o conhecimento e não haveria ninguém para notar isso; consequentemente, não haveria uma história do que os seres fizeram ao longo das eras, não haveria cultura nenhuma”. Logo, conhecer as origens da consciência, será, certamente, um dos maiores desafios dos neurocientistas neste século.

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