Tribuna Ribeirão
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Algazarra de cigarra não me azucrina, prefiro-a ao som de buzina 

Perci Guzzo *
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Meu grande medo é o silêncio total das aves. Todas as manhãs eu comemoro, ainda deitado na cama, os gorjeios, silvos, pipilos e chilreios. Eles me confortam e me tranquilizam. Seria um final triste demais não os escutar.

Leio calado sobre o silenciamento da natureza. Notícia avassaladora para minha alma. Com o empobrecimento e o desaparecimento de espécies animais, as florestas, as savanas, os manguezais e outros ecossistemas estão mais quietos. Perda da variedade de espécies dos “mais que humanos” – para usar a expressão empregada pela jornalista Eliane Brum aos seres vivos não humanos.

Dias atrás me deparei com uma garça branca que se arrastava pelo asfalto. Já era noite. Os carros passavam rapidamente. Parei o meu trambolho de quatro rodas e fui a seu encontro. Um casal de idosos tentava pegá-la junto à guia. Colocamos a pobrezinha numa caixa de papelão e rumei para o Bosque Municipal. Um plantonista veterinário nos atendeu. Mas logo em seguida a ave branquinha silenciosamente morreu. Tristeza maior não houve naquela noite de sexta-feira, amigos.

Não temos tido acesso às informações precisas da quantidade de animais silvestres mortos e sequelados pela gigantesca onda de incêndios que tomou conta do Brasil neste ano. É certo que ruídos de sofrimento ainda ecoam pelas matas e matos do nosso país. Mas quantos brasileiros e brasileiras estão mobilizados e tristes por isso?

“A extinção é para sempre”. Essa frase incisiva e verdadeira é utilizada em campanhas sobre o desaparecimento de espécies vegetais e animais. Ela me levou a escrever o poema “Gostaria de estudar os macucos”.

“Gostaria de estudar os macucos/ De fazer foto de anta com borboletas/ Queria sentir medo de onça pintada/ E contemplar patos selvagens no Pantanal/ Ouviria caturritas em pé de macaúba/ Supondo grande sucuri em vereda de buritizal/ Nadaria junto a piraputangas/ Escutando araponga no meio da tarde/ Navegaria em águas doces para ver botos/ E mergulharia em igapós procurando pirarucus/ Moldaria em gesso pegadas de tatu canastra/ Surpreendendo você ao mostrar-lhe um tatu bolinha/ Sairia à busca de saíra de sete-cores/ Procurando tiê-sangue na Jureia/ Me embrenharia na Mantiqueira para observar canários/ Contemplando paineiras-brancas na Bodoquena. Tudo teria sabor de vida/ Em nada eu me preocuparia/ Se todas as espécies estivessem a salvo”.

As 36 toneladas de peixes mortos em julho passado no Rio Piracicaba pela contaminação de suas águas com resíduos agroindustriais de uma usina de álcool e açúcar. Os mais de 200 botos vermelhos e tucuxis mortos em setembro de 2023 no Lago Tefé no Amazonas devido às altas temperaturas da água. As 70 antas mortas em 2021 no Mato Grosso do Sul pela ingestão crônica de agrotóxicos usados em monoculturas.

A estrondosa subnotificação da morte de animais mamíferos atropelados nas rodovias; répteis queimados vivos; peixes asfixiados; pássaros que morrem de sede; anfíbios sem hábitat; abelhas que perdem o senso de retorno às colmeias e morrem devido a ingestão de agrotóxicos; cigarras que deixam de cantar devido à ausência de chuva; infinidade de insetos que voam atordoados até morrerem ao redor de canhões de luz artificial…

Enquanto isso seguimos moucos nas ruidosas cidades brasileiras. Estamos ficando duplamente surdos. Não conseguimos nem nos escutar. Falamos por cima da fala dos outros. Gargalhadas desproporcionadas nos encontros sociais; salas de cinema ensurdecedoras; ruas e avenidas abarrotadas de barulho…

Cito o escritor norte-americano William Ophuls, autor de “A vingança de Platão: política na era da ecologia”: “nossa suposta libertação da natureza nos tornou animais doentes, que sujam seu próprio ninho e desperdiçam sua essência num modo de viver desordenado, sem levar em consideração o sofrimento imposto sobre o restante da criação e a posteridade”.

Estejamos tristes, pois a tristeza, melhor que o medo, nos contém e pode sinalizar alguma reação civilizatória na medida que os tempos atuais solicita.

* Ecólogo e Mestre em Geociências. Autor do livro “Na nervura da folha”, lançado em 2023 pelo selo Corixo Edições 

 

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