Por Ana Lourenço
Se há algo em que a indústria televisiva americana gosta de investir são as sitcoms. Friends, Seinfeld, Big Bang Theory, The Office. O estilo que surgiu ainda na era do rádio no Reino Unido virou um clássico nos EUA e também fez suas raízes aqui no Brasil. O termo vem do inglês ‘situations comedy’ (comédia de situação em tradução livre) e tem como premissa trazer o humor para acontecimentos do cotidiano: o dia a dia do trabalho, o encontro de amigos ou a convivência de integrantes de uma mesma família.
Foi nesse último grupo que o Brasil investiu pesado, desde a década de 1960, com Família Trapo (1967), quando Jô Soares e Carlos Alberto de Nóbrega trabalharam juntos na TV ainda em preto e branco. Anos mais tarde, minha mãe fazia questão de ver Sai de Baixo (1996), que já me fez dar muitas risadas pelo Globoplay. Mas a família que marcou a minha infância foi a de dona Nenê e seu Lineu, em A Grande Família (2001). Claro que Bozena, a empregada doméstica interpretada por Alessandra Maestrini, também me arrancou boas gargalhadas em Toma Lá Dá Cá, em 2007.
Mas no primeiro semestre do ano que vem, a família de dona Isadir (Rodrigo Sant’Anna) também promete estar no pódio com a primeira sitcom brasileira da Netflix, A Sogra Que Te Pariu. “Nós somos herdeiros de uma grande tradição da comédia e da própria sitcom brasileira, que teve tantos gênios e agora é apostar nisso que é tão nosso e levar para o mundo”, conta o diretor artístico Alex Cabral que, ao lado do ator e criador da série, falou com o Estadão por entrevista de vídeo.
A tecnologia também ajudou a reportagem na hora de conhecer o set da série, no Rio, e assistir a dois dos três ensaios da equipe, via chamada de vídeo. Da cadeira do meu home office, eu era direcionada para cima e para baixo nas mãos do assistente Jorge, enquanto Rodrigo pessoalmente fazia um tour detalhado em seu camarim, nos ambientes da série e na própria plateia. Na hora da gravação, Jorge assumia total controle enquanto Rodrigo arrancava gargalhadas ao lado de um elenco de peso da comédia que compunha a parentada.
Os erros de gravação, os risos soltos dos atores ou os momentos de interação com o público eram detalhes que transformavam o ao vivo em um show à parte. Graças às sete câmeras espalhadas pelo estúdio, que quase não tem paredes, era possível capturar essa espontaneidade, característica tão extraordinariamente nossa. “Uma coisa de que a gente gosta e que assume é o fato de que os atores se divertem em cena. Então você vê os atores se desconstruindo ali, rindo dessa desconstrução do personagem… Nosso público gosta muito disso”, explica Alex.
Era justamente nesse momento que as risadas viravam uníssonas e você percebia a força da plateia. Afinal, o que é mais contagiante do que uma risada? “A plateia é o fomento do humor. Quando você está no estúdio, frio, com câmeras, com a equipe em geral, você tem muito pouco retorno, então não se sabe o que está engraçado ou o que não está. Quando entra o público, parece que fecha um ciclo do humor, quase uma coisa viva do teatro que a gente leva um pouco para a TV”, diz Rodrigo.
Por causa da pandemia, no entanto, os convidados, que deveriam ter mais de 18 anos e estar vacinados, foram testados, paramentados e separados por compartimentos de acrílico. Ao chegar, eram posicionados nos assentos, distribuídos numa plataforma em formato de V para garantir boa visibilidade e ganhavam um fone de ouvido, que permitia uma melhor compreensão das piadas. No teto, telas de TV exibiam as cenas já gravadas.
“Nossa intenção é que as filmagens com plateias sejam mais fluidas, exatamente para a gente conseguir manter esse clima teatral de ‘começou e não para’. Óbvio que estamos fazendo TV, então às vezes acontece uma coisa ou outra, mas o ideal é que seja fluido. Por isso, para cenas mais complexas ou muito específicas, é interessante que a gente faça sem plateia, para termos guardado esse take para depois, quando a plateia entrar aí a gente faz um esquema mais teatral”, explica ainda o ator.
O esquema de improviso pode dar a impressão de que é fácil fazer comédia, mas, na verdade, dá muito trabalho e exige uma equipe muito bem preparada. Isso fica muito claro no episódio a que assisti – com previsão para ser o quarto da temporada de dez capítulos -, que tinha a participação especial de um cachorro. No primeiro dia, somente o “ensaio frio”, com foco nas marcações, luz, som, etc. No dia seguinte, duas gravações com a plateia: uma de manhã e outra à tarde, com intervalo para discussões de ideias.
Depois das gravações, o material vai para edição, em que é selecionado o melhor de cada episódio. “Estamos o tempo inteiro tentando potencializar esse humor, porque o nosso objetivo de trabalho é oferecer o ‘filé do filé’ para que as pessoas riam do começo ao fim. Por isso estamos mapeando os episódios entre 22 e 26 minutos”, conta ele, que explica o número irregular, graças à flexibilidade do streaming.
Família unida
O contexto pandêmico, mais especificamente a percepção particular de Rodrigo durante esse período, foi inspiração para a criação da história de sua nova série. “No começo, quando não sabíamos muito bem onde isso iria dar, o que iria acontecer, eu fiquei muito preocupado e resolvi trazer minha mãe e minha avó para a minha casa e do meu marido. E essa é exatamente a situação da série. A gente achou que elas iam ficar algumas semanas e aí virou uma coisa absurda que foi o tempo que a pandemia se estendeu. Tive muito material para colher, viu”, lembra ele, aos risos.
Dona Isadir, portanto inspirada em sua mãe e sua avó, faz o mesmo com o filho Carlos, interpretado por Rafael Zulu, que mora em uma mansão na Barra da Tijuca junto com a mulher, Alice (Lidi Lisboa), e os netos Jonas e Márcia (Pedro Ottoni e Bárbara Sut). Além de Marinez (Daniela Fontan), que trabalha há anos na casa e assiste às eternas brigas da nova visitante com a patroa diariamente. Seu apartamento no Cachambi, na zona norte do Rio, é alugado por Cezinha (Ney Lima), filho de Fátima (Solange Teixeira), uma amiga de longa data. “Eu sempre me inspiro em minhas experiências pessoais para a ficção. E gosto muito dessa linguagem de brincar com as diferenças sociais. É algo que, pelo fato de ter vindo do Morro dos Macacos, traz uma identidade das coisas de que eu gosto”, explica ele.
Desde 2006, quando criou sua produtora Os Suburbanos, responsável pela sitcom da Netflix, Rodrigo passou a dar protagonismo a personagens que quase sempre ocupam funções periféricas nas tramas e destaque aos conflitos do universo suburbano. Assim, ele contribuiu com a diversidade de vozes e olhares no mercado de entretenimento. E não é diferente com A Sogra Que Te Pariu. “A gente tem uma família negra dentro da Barra (da Tijuca) e essa representatividade é muito legal. E eu percebo isso. No condomínio que eu vivo, só tem eu e meu marido de preto e isso ainda é algo pra falar e tem de ser falado de uma maneira muito espontânea, de maneira alegre, através da comédia e do bom humor”, pontua ele.
Das famílias da sitcom brasileira citadas no começo do texto, nenhuma delas é negra. Lá fora, até podemos pensar em Um Maluco no Pedaço, Todo Mundo Odeia o Chris ou Eu, a Patroa e as Crianças – todas traduzidas e que são sucesso de assinatura por aqui. Mas sem dublagem, não vemos famílias negras. “A família preta num condomínio na Barra é algo emblemático, de uma quebra que tem de ser normatizada. Isso não tem de chamar atenção”, coloca Rodrigo. Mas ainda chama. A sorte, segundo Alex, é que a comédia evolui junto com a sociedade. “Ela aponta o dedo, coloca o dedo na ferida. Ela está ali para mostrar a falsidade, a hipocrisia, para expor algo que deve ser exposto.”
Dona Isadir não é a primeira mulher que Rodrigo interpreta nas telas. Com a personagem Valéria Vasques, o ator estourou em Zorra Total. Depois teve Graça, com quem até hoje faz sucesso no Multishow no programa Tô de Graça. “As minhas mulheres, que são minhas referências, minha mãe, minha madrinha, minha avó, estão envelhecendo e a Isadir começa a encher a vida sob essa ótica da terceira idade. Ela vem com essa abordagem um pouco diferenciada que vem da minha maturidade também”, diz.
Uma das suas inspirações no humor e na comédia, é o criador de uma senhora que, penso eu, seria muito amiga de dona Isadir. A Dona Hermínia de Paulo Gustavo. “Desde que eu faço a Valéria, falam que pareço o Paulo. A gente ocupa esse lugar do humor cortante. Admirava demais o Paulo. Lembro que durante um prêmio, a que estávamos concorrendo juntos, ele me falou que também admirava muito meu trabalho, então era mútuo o carinho. E acho que quando se fala de família, de mãe, se esbarra em temáticas muito similares.”
Respiro
Depois de um ano com tantas lágrimas, o espontâneo, e descontraído se faz necessário. “Dá para perceber como as pessoas estavam carentes de sorrisos, de abstração dessa realidade tão sombria. E eu comecei a valorizar mais ainda nossa função social, porque somos diaristas, no sentido de limpar mesmo essa atmosfera soturna”, filosofa Rodrigo.
A alegria que o público recebe não fica muito longe da que é sentida pela própria equipe. Alex, que perdeu o pai e o avô durante a pandemia, encontrou forças ali no set. “Além de eu sentir um prazer muito grande de estar lá, eles me fizeram rir, esquecer as minhas dores e foi aí que entendi que o nosso trabalho vai muito além, nós somos curadores de alma. E isso se estende para o nosso público também.”
O objetivo agora é levar o jeitinho brasileiro de fazer comédia para os 190 países alcançados pelo streaming.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.