O acervo de Adoniran Barbosa, ícone do samba paulista, retorna a São Paulo após uma década afastado da cidade e sem abrigo fixo. São mais de mil itens que preservam e ajudam a contar histórias de personagens e cartões-postais da maior cidade da América Latina entre as décadas de 1950 e 1980, bem como da música, do cinema, do rádio e da publicidade desta época, imortalizados nas obras do cantor, compositor e ator. O novo lar do acervo é inusitado, mas revela a afinidade entre dois gêneros que retratam a voz do povo: a Galeria do Rock.
Entre as preciosidades que o acervo de Adoniran Barbosa reúne estão objetos de época (ternos, chapéus, gravatás borboleta, sapatos e óculos) e documentos diversos (como uma carta de uma entidade francesa que assegura ao compositor brasileiro os direitos autorais pela execução de ‘‘Trem das Onze’’ na França, onde fez enorme sucesso), além de fotografias que revelam a intimidade de João Rubinato, o cidadão por trás do artista.
Conta também detalhes da carreira artística, com instrumentos musicais (banjo, flauta e tambor), partituras, scripts de radionovelas, roteiros de programas de televisão, cartazes de filmes como ‘‘O Cangaceiro’’ (1953), de Lima Barreto, quando Adoniran interpretou o personagem Mané Mole, e discos raros de vinil com canções interpretadas por ele próprio e por outros artistas, entre elas ‘‘Saudosa Maloca’’, gravada pelo grupo que ajudou popularizar as suas composições, Demônios da Garoa, em disco lançado pela gravadora Odeon em 1957.
Adoniran tinha outras distrações quando não estava fazendo música, rádio, cinema ou televisão. ‘‘Paizão também foi um exímio artesão. Ele tinha o domínio do ferro e da madeira e nos deixou um legado de objetos confeccionados com esses materiais’’, lembra a única filha e herdeira do cantor, Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa. Um dos objetos mais curiosos criados por Adoniran e que fazem parte do acervo é uma aliança confeccionada com uma corda ‘‘mi’’ de um cavaquinho, com a qual ele presenteou a sua segunda esposa, Mathilde. A história acabou virando o samba ‘‘Prova de Carinho’’, lançado em 1960.
Há também alguns brinquedos, entre eles carrosséis, locomotivas e miniaturas de bicicletas, todos produzidos em ferro. ‘‘Adoniran costumava presentear aqueles por quem tinha um carinho especial ou algum tipo de gratidão com miniaturas de bicicletas feitas por ele. Entre os agraciados estão o cineasta Lima Barreto e o produtor musical, João Carlos Botezelli, o ‘Pelão’’’, relata o cineasta Pedro Serrano, que estuda a obra do compositor do ‘‘Samba do Arnesto’’ (1953).
‘‘O trenzinho funcionava e passava por todas as estações, que ficavam pintadas na parede da garagem de sua casa. Seu grande barato era chamar a criançada para ver o trem funcionando, mas logo depois já tratava de dispersar todos os curiosos antes de começarem a mexer em tudo’’, acrescenta.
Altos e baixos – Sua filha e herdeira define a história do acervo como longa e cheia de altos e baixos, assim como a carreira do pai. Partiu de Dona Mathilde, ainda em vida, juntar todos os itens do esposo que guardava ao longo dos anos de convivência e transformá-los em um acervo, após a morte de Adoniran, em 1982. ‘‘Meu próprio pai afirmava que ela era sua maior fã. Há relatos de amigos próximos e outros familiares que descrevem o quanto o sambista, de temperamento não tão fácil quanto se imagina, era paparicado pela mulher’’, afirma Maria Helena.
O primeiro destino do acervo foi o cofre do antigo Banco de São Paulo, no subsolo de um edifício no centro da cidade, na década de 1990. ‘‘Lá foi pouquíssimo visitado, afinal, podemos convir que cofres foram desenhados para repelir pessoas e não para atraí-las’’, defende a filha do compositor. Depois houve uma breve tentativa de deixá-lo no Teatro Sérgio Cardoso, no Bixiga, mas o espaço não parecia adequado e a preservação das peças podia ser colocada em risco.
‘‘Assim, o acervo seguiu rumo ao Museu da Imagem e do Som (MIS), onde parecia ter encontrado destino permanente, afinal nada mais pertinente que a história de um dos maiores multimídias do país habitasse aquele local’’, relata Maria Helena. ‘‘Porém, em 2009, o então diretor do museu declarou que já não havia mais espaço para o acervo de Adoniran ali. Orientada por minha advogada Luciana de Arruda, tive de resgatar o acervo do MIS às pressas’’, acrescenta.
Desde então o acervo, que está fechado em caixas e pastas catalogadas pelo departamento de arquivologia da Universidade de São Paulo (USP), ficou guardado em sítio e depois num galpão industrial, ambos no interior do Estado de São Paulo. ‘‘Várias foram as tentativas de se construir o Museu Adoniran Barbosa, todas elas sempre frustradas pela falta de recursos, de patrocínios e da vontade política em preservar a história desse que é o maior nome do samba paulista’’, pontua Maria Helena. Ela ressalta que, curiosamente, o único museu dedicado exclusivamente ao sambista fica na comunidade Bror Chail, em Israel, dentro de uma locomotiva – em analogia ao ‘‘Trem das Onze’’ – doada pelo governo israelense.