Por Adalberto Luque
De acordo Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 55,5% da população brasileira se declarou negra. Deste total, 43,5% se disseram pardos e 10,2% pretas. As populações parda e preta formam a raça negra que, pela primeira vez desde 1991, superou a população branca.
Mas se por um lado os negros são maioria da população, por outro o acesso a certas oportunidades se mostra cada vez mais difícil para esses cidadãos. O número aumentou, mas o abismo social, fruto do racismo estrutural, permanece.
Não seria absurdo afirmar que a maioria dos brasileiros jamais foi atendida por um médico negro. Até porque, de acordo com o Estudo da Demografia Médica no Brasil de 2023, elaborado pela Associação Médica do Brasil (AMB), apesar do aumento percentual de alunos de medicina que se declararam pardos e pretos, esse número ainda é muito baixo.
Em cada 100 médicos que atuam no sistema de saúde público ou privado, apenas 24 deles são pardos e somente três se declaram pretos. “Cada vez mais negros cursam a graduação de medicina no Brasil. No entanto, em termos percentuais, considerando o total de estudantes, não houve alteração ao longo de uma década na proporção de alunos autodeclarados pretos e pardos”, conclui a AMB em seu levantamento, conduzido em parceria com a Universidade de São Paulo (USP).
Sempre provando que estamos acima
O eletricista Luiz Fernando Correa dos Santos, de 49 anos, conhece bem essa desigualdade social. De pele preta, ele vem superando os obstáculos ao longo de sua vida. Sabe que, por conta da cor de sua pele, o caminho será sempre mais difícil.
“Posso estar em igualdade social, classe, gênero, pode ser classe média, pobre, periferia, vai ser mais difícil para o negro. Temos que estar sempre provando que estamos acima”, lamenta.
Segundo ele, não dá para aceitar é o racismo. “O tom da minha pele diz que sou negro sim, graças a Deus. Amo ser negro e isso não vai mudar. Passo isso para meus filhos. O que não pode é haver essa onda de racismo. Todos nós sangramos, sentimos dores, temos emoção, amamos, pegamos câncer, diabetes. Somos todos humanos”, destaca.
Santos teve que se desdobrar para chegar onde chegou e trilhar uma carreira como eletricista, respeitado por colegas e por amigos, por seu domínio em uma área com a exigência de muito conhecimento específico e onde qualquer erro pode ser fatal. Mas nem sempre foi assim para ele.
“Trabalhei na loja de uma rede norte-americana de fast food. Quem se destacava, se tornava o destaque da loja. Me lembro que eu e uma menina negra nos destacamos. Falaram que seríamos o destaque da loja no mês seguinte. Tiramos fotos. Mas no mês subsequente apareceram fotos de outras duas pessoas. Concluímos que as duas apareceram porque eram brancas. Nunca tirei isso a limpo, pois o gerente só foi aparecer meses depois, quando já havia saído da rede. Sofremos discriminação por nossa cor”, lamenta.
Santos e sua esposa se esforçam para que os filhos não sofram o que sofreram. Pagam escola particular e estão sempre dialogando. “Ensino eles a viver em igualdade, nunca em divisão. Dá para conviver com culturas diferentes. Tenho muitos amigos brancos. O que não dá para aceitar é o racismo. Perante Deus, somos todos iguais e tem que ser assim, independentemente da cor”, conclui.
Raros casos nas altas cortes
De acordo com o site Migalhas, em levantamento feito através de reportagem da TV Justiça, o número de pretos e pardos e mínimo, beirando o traço, nas altas cortes brasileiras.
O Supremo Tribunal Federal (STF) teve apenas três ministros negros, desde sua criação, nos tempos do império. Pedro Lessa e Hermenegildo Barros atuaram na primeira metade do século XX e Joaquim Barbosa entre 2003 e 2014.
No Supremo Tribunal de Justiça (STJ), dos 33 ministros atuais, apenas um, Benedito Gonçalves, se declara negro. Pelos lados do Tribunal Superior do Trabalho (TST), em toda sua história foram quatro os juízes negros, incluindo seu atual presidente, ministro Lelio Bentes Corrêa, que se declarou pardo. E no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a ministra substituta Edilene Lôbo é a primeira mulher negra a integrar a corte. Antes dela, apenas dois outros negros atuaram no TSE.
Já a pesquisa Justiça em Números 2024, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aponta que 14,25% dos juízes brasileiros se declararam negros. Entre os servidores do Poder Judiciário, esse número cresce para 27,1%. Tribunais do Rio Grande do Sul, São Paulo e Santa Catarina possuem menor presença de magistrados negros. “Nós pretendemos mudar progressivamente essa estatística, que não reflete a demografia da sociedade brasileira”, admitiu o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do CNJ, em entrevista para a Agência Brasil.
Racismo estrutural
Segundo a advogada Marina Rossi, presidente da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SP) Subseção Ribeirão Preto, o racismo brasileiro é um problema estrutural, que dificulta ou até mesmo impossibilita a real inclusão e exercício de cidadania de pessoas negras na sociedade.
“Quando falamos em racismo sistêmico não podemos considerar individualmente a vida de uma pessoa negra, mas sim, temos que olhar para todos os dados e estatísticas em todos os âmbitos da nossa sociedade, como por exemplo: grau de escolaridade, empregos informais, taxa de desemprego, taxas de homicídios, acesso a saúde, saneamento básico, entre tantos outros. Acredito que o combate ao racismo é uma luta diária”, aduz.
Para Marina, uma estrutura dificulta o acesso de pessoas negras a grandes cargos e profissões. “Assim, apesar de pessoas negras serem maioria populacional do nosso país, não estão representadas de maneira efetiva em inúmeros cargos e profissões, principalmente quando olhamos para cargos políticos e de liderança, sendo esse um reflexo real do racismo estrutural que existe no Brasil.”
Marina lembra que, quando uma pessoa negra é vítima de racismo, deve procurar instituições como a Polícia Civil para registrar o boletim de ocorrência. Além disso, destaca que existem muitas organizações na cidade que acolhem e orientam as vítimas. Entre elas, a Comissão de Igualdade Racial da OAB/SP, que preside. “Mas friso que é sempre importante a vítima registrar o boletim de ocorrência”, encerra.
Falta de oportunidades
De acordo com a Agência Brasil, dos mais de 850 mil presos no Brasil contabilizados no primeiro semestre deste ano, 70% são negros. Essa situação escancara o racismo estrutural, que por conta da falta de oportunidades latente na sociedade, deixa o negro à mercê da criminalidade. Além disso, a falta de acesso a bons advogados ajuda esse número a ser tão acentuado. Os dados constam do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024.
Segundo o Anuário, “o grupo racial dominante – leia-se, o que ocupa as posições sociais de prestígio e com poder decisório também no sistema de justiça – justifica sua atuação na ausência de segregação formal, inclusive, com amparo na lei em vigor.”
De acordo com o anuário, 82,7% das vítimas da letalidade policial (mortas em confronto ou supostos confrontos com policiais civis e militares) são negras. Por outro lado, 69,7% dos policiais mortos também são negros. Tanto para homens, quanto para mulheres, os negros são as principais vítimas de homicídio. São 76% entre os homens e 66% entre as mulheres. Ou seja, a violência mostra seu lado mais cruel para os negros.
Outro número assustador foi divulgado pela Ouvidoria das Polícias do Estado de São Paulo, na segunda-feira (18/11). Segundo o ouvidor das Polícias, Cláudio Aparecido Silva, os boletins de ocorrência com registro de crimes raciais cresceram 968,5% entre 2020 e 2023. Apenas no ano passado, foram 4,7 mil casos, cerca de 80% deles na Capital e região metropolitana.
Claudinho, como o ouvidor é conhecido, já foi ele próprio vítima de racismo. Casado, quatro filhos e dois netos, formado em Educação Física, lembra de um insulto que ouviu quando, ainda garoto, trabalhava como engraxate. Após sujar acidentalmente a meia de um investigador na delegacia onde estava engraxando, ouviu de alguém: “Nem para isso essa raça serve”, disse o racista. “Aquilo ficou plantado na minha cabeça e, semanas depois, andando pela rua eu vi um panfleto jogado no chão, do MNU (Movimento Negro Unificado), da campanha ‘Mano, não morra e não mate’. Aí eu decidi ir na reunião, que acontecia na sede do Sindicato dos Radialistas”, lembra Claudinho. Desde então, se engajou definitivamente na luta contra o racismo.
No Brasil, duas leis tratam dos crimes ligados ao racismo. A Lei 7716/1989 determina punição para discriminação ou preconceito de origem, raça, sexo, cor ou idade. E a Lei 14.532/2023 equiparou a injúria racial ao crime de racismo. Mas, nem mesmo o endurecimento de leis para combater o racismo e a injúria racial tem intimidado os criminosos que praticam atos racistas. Ainda há muito a ser feito para combater essa lamentável situação.