O Brasil se tornou, recentemente, um terreno minado de beligerância. Não se pode pensar, não se tem o direito de externar uma ideia, sem merecer repúdio e indignação. Somos proibidos de pensar no Brasil da intolerância. Quanta mesquinharia, para seres finitos, detentores de uma dádiva gratuita que é a vida. Algo frágil, efêmero, que pode acabar em um instante. Sem qualquer possibilidade de retorno.
Onde foi parar o respeito ao outro?
Já fomos melhores. E isso é constatável mediante recurso à memória de experiências vividas e também quando se encontra alguns minutos de refrigério na leitura daquilo que valha a pena.
Releio o livro “Harmonia dos Contrastes”, editado em 1991 pela Academia Brasileira de Letras, com a correspondência entre Alceu Amoroso Lima e Jackson de Figueiredo. Embora este sergipano tenha sido o responsável pela conversão do carioca Alceu, eram seres humanos muito distintos. Tanto que, numa das cartas a Jackson, o espírito superior de Alceu mencione o “verdadeiro abismo de ideias” que os separava e o fato de tão pouco se encontrarem pessoalmente.
Nessa mesma correspondência, datada de 17 de outubro de 1922, mesmo ano da famosa “Semana de Arte Moderna”, o notável Tristão de Athayde evidencie sua humildade, virtude tão em desuso nesta era em que a vaidade paira soberana sobre tantos humanos.
Alceu admite não dominar toda a ciência e conhecimento: “Tenho uma cultura falha, incerta, desigual, desordenada, adquirida por meu próprio esforço, já que os nossos mestres, nessa comédia de ensino que possuímos, nos deixam sair dos cursos mais emperrados de inteligência e vazios de conhecimentos verdadeiros, do que quando para lá entramos. Não tenho a ilusão de que tenha conseguido ou possa conseguir coordenar as minhas ideias, ou antes, o meu esforço de pensar, em um sistema definido”.
A essa altura, Alceu já era um crítico literário consagrado. Mas não hesita em confessar que “o diletantismo, a ocasião, o gosto da contradição, o prazer diabólico da ironia, a hesitação das meias ideias, tudo isso concorre” para que sua obra seja o extremo oposto da arquitetura inabalável do pensamento do destinatário de sua mensagem.
Completa o seu elenco de atributos com uma proclamação ainda hoje eloquente e necessária à reconversão do ser humano, que precisa de maior consciência humanista: “Mas sei também que, sinceramente, o meu instinto mais profundo, a minha intuição mais pura, a minha fé mais ardente, me dizem que a grandeza suprema do homem está primeiramente na bondade, isto é, no sacrifício, no perdão, no altruísmo, na tolerância, (sim, na tolerância), enfim, no amor, que tudo diz; e, em seguida, na livre inteligência das coisas, na investigação subjetiva da verdade, na tortura de procurar por si a solução, que tantos sistemas e tantas religiões oferecem já prontas, sem esforço e com promessas de inefáveis felicidades em paraísos deliciosos para a eternidade dos tempos infinitos”.
Quem negaria, neste turbulento 2019, que o mundo não esteja pedindo socorro e clamando por mais tolerância e por mais amor? Só isso poderá construir uma ponte sobre o “abismo de ideias”, impeditivo do diálogo e do respeito mútuo, que deveria ser apanágio da civilização.