Por Felipe Resk e Tiago Queiroz, enviados especiais
Menos de 24 horas antes de se tornar uma das 11 vítimas da tragédia da creche Gente Inocente, a professora Heley de Abreu Silva Batista, de 43 anos, subiu a escadaria da Catedral do Sagrado Coração de Jesus, no centro de Janaúba, a 560 quilômetros ao norte de Belo Horizonte, para a reunião de crisma do filho mais velho. Na paróquia, conversou com Hélia Pereira, de 48, com quem trabalhou na década de 1990. “Comadre, cê tá rouca demais, não vai dar aula amanhã, não”, recomendou a amiga, que hoje é diretora do Serviço Escolar do município. “Só porque cê agora é chefe, tá querendo me ordenar”, respondeu, brincalhona. Na despedida, falou a sério: “Não falto, comadre. Preciso cuidar dos meus filhinhos”, sem saber que estava prestes a seguir à risca o significado de “professor”: aquele que professa.
Moradora de Nova Porteirinha, vizinha de Janaúba, Heley cruzou bem cedo a ponte do Rio Gorutuba, na divisa entre as cidades, para estar às 7 horas na Gente Inocente, então uma escolinha com apenas 81 alunos matriculados, a maioria filho de lavradores, encravada no anonimato do sertão mineiro. Isso até o incêndio criminoso na quinta-feira retrasada, que destruiu as três salas de aula, queimou livros escolares e matou 9 crianças (a mais velha, de 5 anos), além da própria professora e do agressor, o vigia Damião Soares dos Santos, de 50 anos.
Na manhã da segunda-feira passada, um veículo a serviço da prefeitura de Janaúba estacionou à sombra de uma figueira asiática, em frente à casa de Valda Terezinha Abreu Silva, de 66 anos, mãe da professora. Reunidos lá, os parentes receberam os objetos de Heley que foram resgatados do incêndio: a chave do carro, canetas coloridas, um estojo, uma bolsa esfarelada e metade de uma fotografia do marido Luiz Carlos Batista, de 49, com o filho Breno, de 15.
Em 1993, Batista fazia curso técnico de prótese dentária em Montes Claros, cidade polo da região norte de Minas, quando se apaixonou pela atendente da loja de material de construção do irmão. Na época, Heley era uma jovem de 19 anos. “Ela tinha um sorriso muito marcante”, disse o marido. O relacionamento começou depois de um convite para beber cerveja e terminou em um casamento com quatro filhos: Pablo, já falecido; além de Breno, Lívia, de 12, e o bebê Olavo, de apenas 1 ano e 2 meses.
Nascida em 12 de agosto de 1974, em Montes Claros, Heley mudou-se para Janaúba aos 10 anos, após o pai, o comerciante José Rodrigues da Silva, arrumar emprego em uma loja de móveis na cidade. Alfabetizada desde os 5, a professora estudou em escolas públicas e primeiro cursou Contabilidade para ajudar nos negócios da família. O sonho dela, no entanto, era ensinar as crianças da região a ler e escrever.
Inspiração
Professora aposentada, a tia Doralice de Abreu, de 65 anos, diz ter sido a maior inspiração de Heley. “Quando assumimos uma sala de aula, damos a vida pelos alunos, mas no sentido figurado. Ela deu, de fato”, afirmou. “A brincadeira de Heley, na infância, era ser professora. Ela calçava meus tamancos, vestia minha saia e saía catando lápis e caderno. As amiguinhas eram os alunos”, conta dona Valda sobre Heley, a mais velha dos três filhos. “Ela gostava tanto que até comprei um quadro de giz para a casa.”
Devota de Nossa Senhora de Aparecida, a família acendeu sete velas, uma por noite, em orações a Heley. Com cerca de 20 pessoas, os encontros ocorreram na casa de dona Valda, onde uma foto da professora decorava o terraço. “Veja quanto amor estava escondido, mas saiu para ajudar, irmão”, disse um dos presentes, antes de o grupo iniciar uma música do padre Fábio de Melo. “Incendeia minha alma! Incendeia minha alma, senhor!”