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A Teoria da Inteligência na prosa de Fernando Pessoa

Embora o período compreendido pela produção literária da Geração de Orpheu (1915 a 1927) configure um acentuado esmorecimento da atividade em prosa, ocupados que estavam seus integrantes na decifração do enigma poético, alguns destes se dedicaram também ao conto. A importância disso? O fato de, quando o fizeram, continuarem respeitando a perspec­tiva poética em que se encontravam, estendendo-a na elaboração de prosa poética e poema em prosa, bem como, na criação de contos policiais. Destes últimos, merece destaque o poeta Fernan­do Pessoa, que, como contista, em prosa procurou expressar o mesmo impulso multiplicador que originou seus heterônimos.

Baseando-se em três formas de inteligência, a saber, Inteligência Filosófica, Inteligência Cien­tífica e Inteligência Crítica, Pessoa concebeu, respectivamente, três heterônimos investigadores de polícia: Dr. Quaresma, Chefe Guedes e Tio Porco. Manifestação da superior capacidade especula­tiva do poeta, revela a capacidade pessoana de fazer dialogar uma teoria do conhecimento, a saber, a teoria das inteligências múltiplas, ainda que em suas ruminações científicas, com a capacidade inventiva da teoria literária.

De modo geral, o autor apresenta um conjunto de textos que tratam de crimes e outro voltado à temática policial. Dentre os primeiros, encontram-se um conto de horror (Um jantar muito especial), pelas mãos do heterônimo Alexander Search, e um fragmento (provavelmente núcleo inacabado de conto) intitulado Czarkresko. Dentre os segundos, temos Prefácio a Qua­resma, A Janela Estreita, O Caso Vargas, em conjunto, esboço de ideias para narrativas futuras, bem como, O Roubo na Quinta das Vinhas e A Carta Mágica, em conjunto, contos inconclusos, mas já com desenvolvi­mento de personagens e enredo, os quais organizam um crime, os suspeitos que o cometeram, o local, seu deteti­ve e o desfecho revelando a identidade do criminoso.

Em O Roubo na Quinta das Vinhas (composto por cinco fragmentos), temos o seguinte enredo, “Em Setembro de 1905, acontece, meia-noite, um arromba­mento, causado por uma explosão, numa casa na Quin­ta das Vinhas. Estavam presentes a família do proprietá­rio, José Mendes Borba, e dois amigos da família: Maria Elisa e o engenheiro Augusto Claro. Do cofre, foram roubados cem títulos da Dívida Externa Portuguesa. Intrigada, a polícia desconfia da ação de uma quadrilha, ao mesmo tempo em que acredita, devido às circunstâncias do roubo, ter havido colaboração de pessoas próximas às vítimas. Desconfia-se do filho do dono da casa e do jardineiro, que acaba sendo preso. Para evitar uma injustiça, Augusto Claro procura o nosso protagonista, o médico-detetive Dr. Quaresma, para que auxilie na solução do caso. O narrador não é Dr. Quares­ma, mas o engenheiro Augusto Claro”.

No primeiro fragmento, somos apresentados ao Dr. Quaresma, que conversa com o narrador. No segundo, há um diálogo inconcluso. No terceiro, o Dr. Quaresma revela que já conhece o cri­minoso, apenas a partir das informações colhidas através de Augusto Claro. No quarto fragmento, parte relevante pelo debate de ideias acerca da criminologia, dos processos cognitivos e dedutivos humanos, um discurso feito pelo Dr. Quaresma ao engenheiro Claro aponta a solução do crime e a identidade do criminoso através de diversas considerações sobre métodos de investigação e de raciocínio lógico. No quinto. fragmento, o engenheiro Claro reconhece sua derrota e é remoído pela culpa: “A meio da Praça o Dr. Quaresma voltou para mim a face, mas não os olhos, e disse: ‘o que pensa fazer?’ Tive uma grande vontade de chorar, de lhe pedir perdão, a ele, a quem nada fizera. Durante um momento não pude falar. Depois encontrei a minha voz dizendo-lhe: ‘não sei.’ E acrescentei, passado um momento: ‘o doutor dirá o que quiser’. O Dr. Quaresma olhou então em cheio para mim, e disse-me com grande simplicidade: ‘eu não tenho nada a dizer. Como já compreendeu, decifrei – posso dizer-lhe que decifrei com muita facilidade – o seu caso. O resto é consigo.” Ou seja, é a inteligência e sua ciência que, na habilidade do detetive, conseguiram recons­tituir a verdade.

Circunscritos à tradição inaugurada por Edgar Allan Poe e ao detetive Dupin, tais textos pessoanos dialogam com tratados filosóficos da inteligência, revelando o profundo conhe­cimento do autor acerca de um gênero pouco valorizado no Portugal de então. Pelo viés da Teoria da Inteligência, o princípio fundador desses fragmentos reside na seguinte assertiva: um investigador ficcional de qualidade deve ser, sobretudo, um exercício de raciocínio. Vale conferir.

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