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A reforma agrária brasileira em etapas

Em agosto de 1961, John F. Kenne­dy fez um famoso discurso em Punta del Este, Uruguai. Foi quando expôs a doutrina da “Aliança para o Progres­so”, conclamando a América Latina a promover reformas capazes de elevar o nível de vida da população, especial­mente rural. Mirava em Cuba o foco dessa diplomacia norte-americana. Fidel Castro tomara o poder em 1959 e a ameaça comunista, assoprada pela União Soviética, rondava a América. Tempos nervosos da Guerra Fria.

Aqui está a origem, há 62 anos, dos programas de reforma agrária formu­lados nos países latino-americanos. A começar pelo Brasil, a oligarquia rural estava sendo chamada a entregar os anéis, para não perder os dedos.

JANGO E O REFORMISMO
No Brasil, Jânio Quadros se elegeu presidente da República em 1961. Com a sua renúncia, o vice, João Goulart, conhecido como Jango, assumiu o comando do país em setembro daquele ano. Jango se alinhou ao reformismo kennedista, fazendo da reforma agrária sua prioridade. Passou a atacar o lati­fúndio, tido como como responsável pelo subdesenvolvimento nacional.

A esquerda brasileira, dominada pelos marxistas-comunistas, vivia de condenar a influência norte-americana no país. Ao se aliar a Jango, construí­ram um discurso comum, baseado na luta contra o latifúndio e o imperialis­mo. Essa virou a receita para o sucesso do Brasil.

Naquela época, em 1960, cerca de 55% da população brasileira residia na zona rural. A cidade de São Paulo, que se tornara a maior do país, atingira 3,8 milhões de habitantes. A safra nacional de grãos estava es­tacionada no patamar de 20 milhões de toneladas. A produtividade da terra beirava 1t/hectare. Quase nada se produzia no Centro-Oeste, onde o Cerrado era considerado de solos imprestáveis ao agro. Boa parte dos alimentos era importada.

Inaugurava-se em 1960, no municí­pio de São Carlos (SP), a primeira fábri­ca de tratores do Brasil, a famosa CBT (Companhia Brasileira de Tratores). Nesse mesmo ano, a Manah, eterniza­da pelo slogan “Com Manah, aduban­do dá”, abriu seu capital. Chegava o tempo dos fertilizantes NPK.

VIDA ERA NO CAMPO
A fazenda Santa Clementina, onde eu residia, em Araras (SP), mantinha lavouras principais de café e cana­-de-açúcar, e produzia leite, porco e galinha para autoconsumo. O milho era plantado para alimentá-los.

Quando se matava um porco cevado, todos se juntavam para ajudar a fazer linguiça e codeguim, cortar e derreter a banha, separar o torresmo, escarnar o pernil e separar o lombo. Não tinha óleo de cozinha. Havia 17 casas na colônia da fazenda, todas ocupadas pelos trabalhadores rurais. O serviço básico era carpir, na enxada, o mato. A maioria criava galinha caipira.

A venda mais próxima estava na Usina Palmeiras, onde ficava também a escola primária, a igreja, o clube de festa e os campos de futebol, bocha e malha. Domingo era dia de congraça­mento na roça.
Era difícil, e raro, ir para a cidade, distante 9 km da fazenda. Só meu pai tinha carro. Todos andavam de carroça, ou a cavalo ou, uns poucos, de bicicleta. Televisão, só havia na sede. O rádio imperava na comunicação.

Assim vivia o Brasil há 60 anos. Naqueles tempos, fazia sentido falar em reforma agrária. Havia muita gente capacitada a tocar, na mão, um pedaço de terra. E havia muita terra inculta a ser cultivada no país.

ALIANÇA NÃO FUNCIONOU
Em março de 1964, os militares deram o golpe e, já em novembro, bai­xaram o Estatuto da Terra, permitindo a redistribuição fundiária. John Kennedy havia sido assassinado, mas os EUA seguiam firmes na “Aliança para o Pro­gresso”. Não funcionou direito, porém, a reforma agrária latino-americana.

No Brasil, preponderou a coloniza­ção da Amazônia, e não a desapropria­ção de terras. No Peru, na Bolívia e no Chile, o processo criou mais confusão que produção. Violento êxodo rural começava a esvaziar o campo e inchar as cidades. Na virada dos anos 1960 para 1970 surgiu o terrível problema do abastecimento popular: era necessário alimentar as massas que se instalavam nas metrópoles.

Esse drama histórico da carestia foi equacionado pela modernização tecno­lógica do campo, incluindo a expansão do agro para a fronteira do Centro-O­este. O capitalismo agrário se impôs frente ao socialismo camponês.

PAUTA VOLTOU COM REDEMOCRATIZAÇÃO
Entretanto, depois de 1985, com a redemocratização, a reforma agrária retornou à agenda política do país. Voltou mais como justiça social, não propriamente uma necessidade produ­tiva, como antes fora idealizada.

Bem ou mal, em 30 anos foram distribuídos 88 milhões de hectares, para atender a 1 milhão de famílias, organizadas em 9.000 projetos de assentamento rural. Para compara­ção, a área cultivada total do país, em lavouras temporárias ou permanentes, soma 64 milhões de hectares.

Ninguém sabe ao certo qual o resultado, econômico e social, dessa enorme redistribuição de terras. Nem o Incra, nem o Ipea, nem o IBGE, apresentam dados, consolidados, sobre o custo-benefício do distributivismo agrário brasileiro.

A venda e o arrendamento de lotes nos assentamentos, prática notória, criou uma concentração de terras den­tro da reforma agrária. Tal deformação exige urgente regularização fundiária nos projetos implantados.

Essa pauta assumiu relevância mais recentemente, depois do governo de Michel Temer, momento em que a titulação dos beneficiários da reforma agrária passou a ser prioridade da política governamental. Na legislação, esse passo final é denominado de emancipação das famílias. Sem ocorrer a emancipação, a reforma agrária se tornou uma rosca sem-fim, acumu­lando uma legião de dependentes do Estado, submissos, incapazes de auto­determinação. Sujeitos à subordinação humana, tornam-se facilmente massa de manobra política.

NOVO AGRO
O tempo passou. Araras, minha terra natal, cresceu de 20.000 para 140 mil habitantes. A safra brasileira bateu nas 300 milhões de toneladas de grãos, produzindo cerca de 4.000 kg/ha. Em vez de importar, o Brasil exporta alimentos para 160 países.

O frango caipira virou comida da elite, e o óleo de soja tomou o lugar da banha de porco. Codeguim, ninguém sabe o que é. A CBT e a Manah não existem mais. E a enxada foi aposenta­da pelos herbicidas químicos.

Um verdadeiro apagão de mão-de­-obra preocupa hoje o agronegócio. O campo se esvaziou, e os jovens preferem as luzes da cidade. Agora, quem quiser trabalhar, pode procurar emprego na agricultura que acha. Se tiver estudo e especialização, melhor ainda. O salário compensa.

Todas as casas da colônia na fazenda onde vivi minha infância se esvaziaram, abandonadas há déca­das. O mesmo se verifica na Usina Palmeiras, que fechou. É triste de ver, mas é a realidade.

Tudo tem seu tempo, auge e declínio, se transforma, sucumbe ou evolui. Para uns, melhora; para outros, piora. Nada permanece como antes. Assim é com a reforma agrá­ria. Querer ampliá-la significa uma volta ao passado, como querer reabrir a venda da Usina Palmeiras….

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