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A nêspera

O sistema de funcionamento da spa era puxado. Desde quando escolhera aquela clínica, sabia da rigidez do progra­ma, mas, no seu entender era a única maneira de iniciar seu processo de emagrecimento. Estava vinte quilos acima do peso ideal, o que lhe provocava alguns transtornos na saúde : pré-diabetes, pressão alta, exames clínicos que deixavam a desejar. Mesmo assim, quando chegou dirigindo à spa, sur­preendeu-se com a vistoria feita nele, no carro e na bagagem, em busca de comida e bebida escondidas.

Feita a consulta-padrão de ingresso, sujeitou-se ao primeiro dia de dieta líquida, suportada pela expectativa do que viria a seguir. A rotina era diária. Começava com medir a pressão no consultório do médico, seguia-se frugal café da manhã, longas caminhadas que se repetiam à tarde, ginástica, muita ginásti­ca. O almoço – almoço? – era pródigo em folhas verdes, mas pouquíssima substância. Pequeno descanso e começava tudo de novo. Depois do pouco sustentável jantar, recolher-se e esperar o copo de gelatina trazido ao quarto, que comia com avidez, na esperança de passar um pouco a sensação de fome.

Dormia de cansaço, nem lia o livro que trouxera. Sonhos eram sempre com comida e bebida. Era sim, um bom garfo. E imaginava a hora de sair da clínica, relembrando os chur­rascos semanais, a visita aos restaurantes, os doces magníficos de sua mulher. Mas resistia à vontade de abandonar tudo e ir comer fora da spa, pois havia se conscientizado da necessida­de do tratamento.

Encontrou vários pacientes, que se tornaram amigos, numa solidariedade de sofredores. Para seu espanto, era o mais gordo de todos. Havia mulheres, sobretudo jovens, onde ele procu­rava o que necessitavam perder, pois eram magras e elegantes e andavam dizendo que o regime da clínica era perfeitamente tolerável. O mais próximo de sua idade era um professor que lhe confessou estar ali para se preparar para a viagem anual que fazia à Itália, onde comeria e beberia à vontade.

Outro paciente, um empresário de origem portuguesa, lhe contou que tinha casa naquele país, onde mantinha um enxoval com roupas de dois tamanhos: o primeiro, para usar tão logo chegava ao país. O segundo, para ser utilizado no final da estada, para abrigar o peso a mais adquirido nas comilanças e bebedei­ras. Chegado ao Brasil, vinha ao spa para recuperar a forma.

Quando a fome apertava, entre as refeições, procurava a con­sultora psicológica, que receitava uma caminhada pela corrente de água canalizada, enquanto lhe injetava estímulos de reforço. Várias vezes fazia-o participar de um grupo, onde os membros contavam suas dificuldades e as soluções para vencê-las.

Num destes dias, já no meio do período de permanência, resolveu dar uma caminhada para espraiar a mente, no final da tarde. Evitou a pista que margeava a propriedade e aden­trou um pequena trilha, capim dos dois lados. Numa pequena clareira, a surpresa: uma nespereira. Procurou com cuidado e viu um pequeno fruto, um único fruto já formado, mas verde. Calculou que em dois ou três dias estaria maduro e antegozou o prazer de comê-lo. Passou a vigiá-lo diariamente, sempre de forma dissimulada.

Chegado o dia, tomou seu café da manhã, participou da caminhada, mas em vez de retornar, deu uma desculpa e se apressou para chegar à nespereira. Viu horrorizado que a pequena fruta era degustada pelo empresário, seu compa­nheiro. Viu tudo escuro, soltou um urro e partiu para agredir o ladrão de sua fruta. Alertado pelo grito e pelos pedidos de socorro, outros caminhantes intervieram. O homem foi gen­tilmente convidado a deixar o spa.

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