Tribuna Ribeirão
Cultura

A identidade do povo negro na periferia de Ribeirão


O Professor Lages entrevistou o Mestre Cabide e a Professora Rosana, responsáveis pelo Centro Cultural Isègun, localizado no bairro Antonio Palocci. Eles conversaram sobre o importante trabalho social e cultural com crianças e adolescentes na periferia da cidade, resgatando as raízes da identidade negra, parte essencial da nossa formação. Veja a seguir a entrevista na íntegra.

Professor Lages: Uma vez Ponto de cultura, sempre ponto de cultura. O Centro Cultural Isègun desenvolveu o projeto Dandhara como ponto de cultura entre 2011 e 2013. Foi importante para vocês aquele conveniamento com a Pre­feitura e o Ministério da Cultura?
Mestre Cabide: Foi fundamental para a continuidade do trabalho e o aprofundamento do trabalho cultural e social que já vínhamos desenvolvendo. Pudemos diversi­ficar as atividades e os espaços, e hoje temos a sede aqui no bairro Antonio Palocci com atuação também no Avelino Palma, Si­mioni, Ipiranga e no João Rossi. E agora, mesmo sem financiamen­to, nós continuamos atuando com este trabalho contando com a colaboração dos envolvidos, sem cobrar mensalidades, mas apenas com o trabalho de todos.


Professor Lages: Então vocês aqui acertaram com a sustentabilida­de. Tiveram pernas para continuar caminhando mesmo depois de encerrado o projeto. E isso vocês fizeram muito bem aqui, correto?
Mestre Cabide: Exatamente, mesmo que alguns dos nossos agentes culturais da época do ponto de cultura tivessem que se retirar porque precisavam de um trabalho assalariado. O convênio foi muito importante. Veja bem. Nós tivemos jovens arte-educa­dores, ainda no início de sua vida profissional e já precisavam de uma retaguarda, de um apoio para a sua sobrevivência econômica. E isso foi possível na época do ponto de cultura.


Professor Lages: Que atividades vocês desenvolvem no dia-a-dia, tanto aqui na sede quanto nos outros bairros onde vocês têm atuação?
Mestre Cabide: O nosso forte é a capoeira. Mas desenvolve­mos também outras atividades como teatro, música, percussão, e também um trabalho bem diferenciado que a Rosana está desenvolvendo agora junto ao Educandário Quito Junqueira e em quatro núcleos da criança e do adolescente. Nesses espaços, ela incrementa vários aspectos da cultura afro-brasileira de acordo com a Lei 10.639 e com os PCNs.


Professor Lages: Rosana, vocês sempre tiveram uma pegada mui­to forte neste resgate da cultura afro no âmbito escolar. Até pela questão de cumprimento de lei, como o Mestre Cabide já colocou. Como está esta questão hoje? Você que já atuou na Secretaria Municipal da Educação, atual­mente a rede municipal de ensino tem levado às escolas projetos nesse sentido?
Professora Rosana: Vivemos hoje em total retrocesso. Não existe ninguém desenvolvendo trabalho de educação para as relações étnico-raciais e a Prefeitura não fala sobre o assunto. Não existe uma implementação efetiva da lei. Quando eu estive na Secre­taria, lutamos pela regulamen­tação para a aplicação da lei nas escolas municipais e não conseguimos, apesar da nossa insistência. Hoje, desenvolvo um trabalho de educação não formal junto ao Centro Cultural Isègun em parceria com a Fundação Edu­candário Quito Junqueira e com quatro núcleos da Secretaria da Assistência Social nos serviços de convivência de vínculo. Trabalho a sustentabilidade étnico-racial dentro dessas instituições. Esses núcleos parecem invisíveis, são esquecidos. A maior parte das crianças atendidas nesses núcleos é afrodescendente. Neste raio de ação do Isègun, trabalha­mos esta educação não formal pensando na sustentabilidade planetária deste indivíduo, desse aluno, desse educando, dessa pessoa que está lá.

Mestre Cabide, Professor Lages e a Professora Rosana


Professor Lages: Mestre Cabi­de, qual é o público que vocês atendem, que faixa etária? Qual a relação do Isègun com a comuni­dade, como ela responde às ati­vidades que vocês desenvolvem? As famílias se integram junto com as crianças neste trabalho? E a relação com as escolas, com os professores?
Mestre Cabide: A relação com a comunidade é boa. Basicamente trabalhamos com crianças e adolescentes e com um número menor de adultos. Os pais e mães sempre comparecem e participam das reuniões, apresentações, festividades etc. Com relação às escolas, ocorre certo divórcio. A relação já foi muito melhor. Já tivemos no passado uma abertura muito maior que hoje. Somos solicitados pontualmente. Por exemplo, próximo a 20 de novem­bro, Dia de Zumbi dos Palmares, chamam para fazermos uma apresentação. Para fotografarem e saírem dizendo que existe um trabalho, que a lei está sempre cumprida. Isso não é verdade. Temos recusado este tipo de par­ticipação, porque não é um projeto sério, não há continuidade, é apenas um evento como o vento.


Professor Lages: Rosana, como é este lance de gênero dentro do trabalho do Isègun? Hoje, esta questão está na agenda das discussões sociais. Há algum direcionamento nesse sentido no trabalho de formação das meni­nas e meninos com vocês?
Professora Rosana: Sem dúvida. Temos uma preocupação muito grande no sentido de as mulheres permanecerem na capoeira. His­toricamente, há muita desistência das mulheres. Sabemos que existem várias razões para isso. Mas fazemos de tudo para as me­ninas persistirem e criarem uma cultura familiar de engajamento e liberdade em nossas atividades para que, mais tarde, elas já como adultas, trazerem suas famílias, seus filhos e filhas. Temos aqui várias mulheres já adultas que convivem com muita tranquilida­de com todo o grupo. Temos aqui toda liberdade. As minhas filhas foram criadas aqui dentro.


Professor Lages: Mestre Cabide, como anda o Movimento Negro de Ribeirão, principalmente agora com esta nova agenda conservadora implementada pelo governo federal, de claro retrocesso em áreas tão sensíveis como educação e cultura?
Mestre Cabide: O Movimento Ne­gro continua atuante em Ribeirão, contando com grupos engajados que vivem de seus próprios recur­sos. Mas com relação do Poder Público Municipal, não existe nada. E o panorama é de retroces­so em todos os sentidos. Exemplo disso é a política implementada pela atual gestão na contratação de serviços na área da cultura através de pregão de menor preço. Isso vem inviabilizando as entidades, além de desvalorizar os profissionais e rebaixar a qualida­de educação e da cultura. Ganha quem oferecer o menor preço e aí a qualidade vai para o espaço. Não há sequer uma avaliação da qualidade do que está sendo oferecido à população. Material? Não existe. Aparecem verdadeiras entidades fantasmas que ganham o pregão e terceirizam a mão de obra pagando preços vergonho­sos. Na capoeira, por exemplo, não existe recursos para a compra de uniformes e outros materiais. O Coletivo Abayomi fez uma roda de conversa recente para debater estes problemas com o recém-chegado secretário da educação. Não podem nos acusar de intran­sigência e de não querer conver­sar. Precisamos de parcerias com o Poder Público. Mas as Secreta­rias também precisam conversar entre si, pois a formação do ser humano é ampla, diversa e plural.

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