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A culinária e a aula de cirurgia

O Magro tinha uma chácara maravilhosa onde se reuniam os amigos queridos e, também, convidados, músicos, artistas, jornalistas e familiares.

Tenho o dom de conhecer e experimentar os meandros da “arte da cozinha”.

Defino a culinária como uma alquimia, a magia de combinar condimen­tos, temperos, levando o sabor ao seu limite, nada é proibido desde o propósito de sonhar e “seduzir com a boca”.

Em uma manhã, seis horas já encontrava-me sob o “caramanchão”, coberto pelos arvoredos, formando um teto silvestre, perfumado pelas flores e o cheiro do mato, no silêncio do alvorecer, apenas o labor das formigas, cortando ramos e os pássaros se banhando nas águas frias da piscina, em uma festa matinal de asas e bicos, cobertos pelos primeiros raios de sol com seus brilhos multicores.

Incrível como é gratificante misturar ervas, temperos, especiarias, no preparo dos petiscos, comestíveis, iguarias, depois levá-las sobre as chamas crepitando e dançando açoitadas pela madeira do eucalipto, nesta busca milenar de saciar os desejos, degustar misturas, levando ao paladar definições indescritíveis.

Sabores são como beijos esperados, refletem colher de pau, ânsias e vonta­des, ervas de línguas ávidas de paladar, penetrando os lábios, chegando até o céu da boca.

Naquela manhã, estava preparando um “tambaqui”.

Foi presente de um dos “habitués”, apaixonado pela pesca, em recente viagem ao Rio Paraguai.

Iniciei como sempre meu labor e prazer gastronômico lavando bem os ingredientes, cortando em formas definidas, regulares e geométricas, o ato de cozer, exige calma e precisão no corte das batatas, cenouras, cebolas, pimentões de todas as cores, tomates, alhos, alhos-porós, envoltos e triturados formando um misto de ervas, salsa, cebolinha, rúcula, sálvia, couve, alecrim, manjericão, louro, tomilho, açafrão e pimenta do reino, em harmonia preparados, pois como o amor deve ser a cada dia regado com quantias de admiração, carinho, atenção, gentileza, paixão, parceria, cumplicidade, desejos, segredos incon­táveis, cabendo apenas dentro de dois seres, seja na multidão ou a “quatro paredes”, em um colchão, nas noites eternas.

Deve ser assado em calor médio, distância de 40 a 60 centímetros da brasa ou um pouco mais.
O fogo perto pode queimar por fora e não cozinhar por dentro. Importan­te estar sempre atento, no caso dessa carne o tempo de assadura costuma ser rápido.

Na hora de servir, retire a “espinha dorsal, com cuidado para não des­manchar, corte em rodelas, tal qual um “rocambole” exposto nas vitrines das padarias.

Faz-se acompanhar junto do “arroz” branco soltinho, uma salada simples apenas de hortaliças verdes, pepinos japoneses, rabanetes, limão, pimenta a gosto e “bon appétit”.

Bem, voltemos ao preparo, estava eu envolto e focado nas minhas tarefas gastronômicas, quando ouvi uma voz familiar em alto e bom som:

-Bom dia!

O que o “Chef” vai preparar hoje?

Respondi:
-“Um tambaqui”, recheado com ervas, legumes e frutas.

Era a rotina do Magrão, ligar o som, em uma seleção de sabores auditivos, Chico, Caetano, Gonzaguinha, Tom, Marisa, Gal, Gil e um festival sinfônico de altíssima qualidade, tal qual bálsamo perfumando os ouvidos, deslizando suavemente em direção aos corações.

Abriu uma lata, sentou-se e ficou observando como era sua marca registra­da, um silêncio monossilábico.
Surgindo o momento de montar a pasta para o recheio, tudo misturado com a indispensável e providencial farinha de mandioca fininha e azeitonas sem caroço.

Tratava-se de um belo representante da bacia amazônica pesando cerca de cinco quilos, fui preenchendo o corpo aberto, até terminar toda a mistura dentro dele.

Um complemento final de suma importância, adicionar meia manteiga, cinco bananas nanicas e três maçãs com casca. As frutas precisam ser deposita­das sobre o recheio inteiras.

O “Magro” bebendo e olhando, sem emitir o menor comentário, apenas o silêncio do desconhecido, pensando onde termina a fantasia e surge a realidade.

Usei uma agulha grande e barbante, ele só observando. Comecei a fechar com a costura desde os raios das nadadeiras para encerrar sob as guelras. Fui costurando em pontos precisos e singulares, quando estava no último ponto, encerrando a “sutura” o Magro exclamou.

– Nossa! Lembrei-me da minha primeira aula de cirurgia.

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