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A controvérsia

Reli, com o mesmo interesse e agrado intelectual, o livro A Controvérsia, de autoria de Jean-Claude Carrière, um dos mais importantes roteiristas do cinema francês. Trabalhou bastante com Buñuel, elaborando o roteiro de Belle de Jour, O Charme Discreto da Burguesia, Este Obscuro Objeto de Desejo, além de vários trabalhos com outros diretores. É também ator, diretor e escritor e nos brinda com este brilhante trabalho de ficção histórica. Alguns anos depois da descoberta da América, a Espa­nha inicia a colonização das novas terras e trata os nativos com violência, humilhando-os e escravizando-os.

Ainda não tendo a dimensão exata do tamanho da descober­ta, surgem várias explicações para os nativos. Seriam moradores do Jardim do Éden ou tribos de descendentes de moradores das Índias? A verdade é que são cruelmente tratados pelos bran­cos que começam a adentrar as Américas, aí inclusos também os portugueses. Historicamente comprovado, surgem estudos sobre a natureza desses selvagens, com duas grandes correntes: a dos que acham que os selvagens são filhos de Adão e Eva e, portanto, tem todos os direitos de preservação de sua vida e sua alma; e a dos que, considerando as suas práticas, inclusive o canibalismo, a ausência dos mesmos valores europeus, acham que os índios não devem ser considerados gente, mas animais, portanto merecem ser escravizados e até mesmo eliminados.

Esta controvérsia, que gerou escritos de religiosos e estudio­sos de ambos os lados, foi o mote para que o autor imaginasse uma reunião, em um convento de Valladolid, então capital da Espanha, sob a presidência de uma cardeal enviado pelo Papa, onde dois expoentes das duas correntes defenderiam seus temas, cabendo ao príncipe da Igreja decidir a favor de uma delas, pondo fim às divergências.

Os debatedores trazidos por Carrière realmente existiram e publicaram vários estudos sobre o assunto. São eles: Bartholo­meude Las Casas, renomado sacerdote espanhol, graduado pela Universidade de Salamanca, veterano de 17 viagens ao Novo Mundo, onde morou, recebeu terras da Coroa e as cultivou com o uso de escravos índios. Como ele mesmo diz, teve uma epifania, percebeu os absurdos da exploração dos indígenas, alforriou-os, renunciou ao cargo de bispo de Chiapas, no México e retornou à Espanha, onde se recolheu a um Convento de Dominicanos, tendo morrido na provecta idade de 92 anos. Seu adversário foi o também espanhol Juan Ginés de Sepúlveda, dominicano, aristo­telista e reconhecido filósofo e pensador. Nunca saiu da Europa, mas dedicou várias obras para provar suas teses.

A parte mais interessante do livro é a exposição das ideias e dos conceitos que embasam as duas posições, bem como as artimanhas intelectuais para ganhar o desafio. O autor tem o dom de manter o suspense quanto ao resultado durante os em­bates de alto nível e, em nenhum momento, antecipa o que irá acontecer. No fim, vence a facção de Las Casas, reconhecendo­-se os nativos como seres como todos os outros, portadores de alma e assim impossíveis de serem escravizados e humilhados. É quando um espanhol colonizador do México, que assistia à controvérsia, pede a palavra para dizer que a solução acabaria com a empreitada nas Américas, pois, se tivessem de assalariar os nativos não haveria resultado nas colheitas e na busca pelo ouro e prata.

Pressionado, o enviado do Papa acata sugestão do superior do convento onde ocorre o debate e declara que a solução seria levar para as colônias os nativos de África, estes sim já consi­derados como não humanos, mas animais. Grande livro para conhecer o embasamento religioso e moral da escravidão que se tornaria a mais negra página de nossa história.

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