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A cadeira vazia de Lupicínio Rodrigues 16/09/1914* – 27/08/1974+

Estava fazendo minha caminhada diária de cinco quilômetros quando, ao passar por uma residência na rua Garibaldi, ouvi o som delicioso de uma música que, pra mim, é inesquecível. Ainda mais na voz da saudosa Elis Regina. Aliada à sua magistral interpretação, cantava “Cadeira vazia”, de Lupicínio Rodrigues.

Na hora viajei no tempo, época em que Ribeirão Preto tinha uma vida noturna intensa com nossos boêmios tradicionais, todos conhecidos e adorados pelos músicos, pois andavam de bar em bar dando canjas, escrevendo poesias em guardanapos, compondo nas mesas, beliscando um tiragosto, chegando em casa, muitas vezes, cruzando com quem já havia dormido e estava indo para o batente. Era uma boemia saudável da qual – confesso – morro de saudades.

“Cadeira vazia”… Faz um tempão que não canto essa obra maravilhosa de Lupe – era chamado assim pelos amigos. Lembrei-me que muitas vezes emocionei-me cantando-a, principalmente quando a letra diz: “Sua cadeira ainda está vazia”.

Certa noite, vendo TV, dei de cara com uma entrevista com Lupicínio Rodrigues. Fiquei ligado e ele dizendo que na noite em que nasceu, choveu tanto que alagou a rua em que seus país moravam e a parteira para trazê-lo a este mundo, teve que chegar de barco. A infância foi humilde como a de todos meninos da época. Já adolescente, vivia em companhia de sambistas adultos. Com 14 anos circulava pelas noites, participando de rodas de samba e já fazia versos com rimas perfeitas. Serviu o Exército em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, onde era muito popular.

O professor de Odontologia da USP de Ribeirão Preto, Dr. Euler da Rocha, foi um grande boêmio, cantor e compositor. Ele me contou que, certa vez, Lupicínio veio a Ribeirão Preto com professores da Universidade Estadual de Santa Maria (RS), onde era “bedel” – o popular “leão de chácara” das escolas, funcionário que trabalha nos corredores das universidades e também presta serviços para os professores.

Confesso que não sabia dessa. Mas a música lhe dava pouco dinheiro, daí o segundo emprego que tinha lá suas garantias. Lupicinio era famoso no Brasil inteiro, os professores quando viajavam para convenções em outras cidades sempre o convidavam. Sua presença facilitava as coisas. Foi numa dessas que o Dr. Euler, ao recepcionar os professores de Santa Maria, o conheceu e a noite virou uma criança para os dois – posso até imaginar dois boêmios de carteirinha batendo altos papos.

Já íntimo do novo amigo, Euler perguntou-lhe como foi que ele compôs “Ela disse-me assim” Lupicínio, rindo, explicou: “Imagine, Dr. Euler, eu com 18 anos já era um compositor conhecido no Sul e com 19 fui servir o Exército em Santa Maria. Era magrinho, esperto e certa manhã estávamos em forma no pátio do quartel, quando o sargento comandante do meu pelotão perguntou: ‘Quem aí sabe consertar vazamento de torneira?’ Levantei a mão e ele disse: ‘Vá até minha casa, minha mulher te indica qual’, e eu fui”, disse Lupe.

“Consertei rapidinho, notei que a mulher do sargento deu mole pra mim, mas morrendo de medo do meu chefe fiquei na minha. Passado mais alguns dias o sargento perguntou: ‘Lupicínio, você sabe consertar chuveiro também?’ Com a minha afirmativa, me mandou de novo pra sua casa, resolvi o problema rapidinho e a mulher do homem deu mole outra vez e sabe como é, né doutor, cheguei junto e acabei virando amante dela”, contou Lupe ao médico-professor.

“Um dia eu estava de folga e fui visitá-la. Ela disse: ‘Não demore que meu marido está pra chegar’. Eu fui ficando, fui ficando e ele chegou, ela enfiou-me debaixo da cama. Meu chefe chegou, não desconfiou de nada e quis ir pra cama com ela, eu no sufoco e eles no bem bom, pensando no que ela havia dito, e ali mesmo compus a música…”

“Ela disse-me assim, tenha pena de mim, vá embora, ele pode chegar, vai me prejudicar, tá na hora…” Esta música fez muito sucesso na voz de Jamelão.

Lupicínio, na música popular brasileira, sua cadeira ainda está vazia.

Sexta conto mais.

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