Tribuna Ribeirão
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A brisa que sopra e não se apaga

Era uma noite de domingo, vazia, solitária e angustiante. Sai correndo rompendo o portão de casa, como o abrir de uma cela, nas ruas o silêncio, quebrado apenas pelas luzes do televisor, executando incansavelmente o tema de um certo programa televisivo, apelidada de “hora do suicídio”, como dizia um grande amigo.

Adentrei o bar que sempre ficava a meia luz, talvez para preservar a nossa solidão, pedi uma vodka, agindo como Maiakóvski e espantando o tédio. Ao fundo na penumbra vislumbrei um vulto com a cabeça baixa, talvez vivendo sua solitude.

Ninguém mais entrou no recinto nem mesmo uma sombra, ficamos ali, dois seres e seus pensamentos envoltos em miscelâneas lotados de dúvidas.

Após um longo tempo, a vida com o seu pulsar e labor veio me desper­tar para a realidade dura do amanhã.
Pedi a conta e me retirei. Na segunda-feira o bar estava mais iluminado, ao entrar deparei com a mesma cena, agora clara do ser sentado, passei em frente sua mesa e com uma deferência o cumprimentei e segui para o meu canto.

Engraçado que me pareceu com exatidão que o conhecia, talvez um vizinho antigo, um parente distante e a noite foi andando com a chegada dos habitués.

Na terça-feira fui almoçar e vi um cartaz que anunciava “sexta e sába­do Johnny Alf na Recreativa inédito e imperdível’ minhas pernas ficaram trêmulas, era ele o vulto do bar.

A noite, passei pela sua mesa e envergonhado, perguntei, você está em uma temporada em Ribeirão? Ele num gesto sério e cordial apontou a cadeira, sen­tei-me sem saber que começaria uma amizade tão marcante quanto insólita.

Passamos a nos encontrar quase todas as noites no nosso bar, também vez ou outra o acompanhava em suas apresentações nos finais de semana.

Impressionante como amizades simples tornam-se tão solidas e ne­cessárias. Em uma destas conversas o tema era solidão, ouvi dele frases e depoimentos que me marcam até hoje.

“Eu sou a pessoa mais só que existe, não tenho ninguém, nem mesmo um Canário” e passou a discorrer sobre sua existência desde a morte do pai, um cabo do Exército, que faleceu quando ele tinha 3 anos.
Sua mãe trabalhava como doméstica, na casa da musicista Geni Bor­ges, que o iniciou no piano e nos estudos da música.

É uma longa história iniciada com a música erudita, durante noites e noi­tes fui agraciado com sua rica trajetória que passa por Dick Farney, Nora Ney, Mary Gonçalves, Tamba Trio, Sérgio Mendes, Paulinho Nogueira, Sabá, Luis Chaves, Luis Carlos Vinhas Sylvia Telles, Luis Bonfá e tantos outros. Influen­ciou profundamente toda uma geração de Tom Jobim a João Gilberto.

Foi um dos baluartes em diversas casas cariocas e paulistas, professor de música do Conservatório Meirelles e autor de uma das mais belas e importantes páginas da Música Popular Brasileira.

Embora o que mais me importava, não foi o seu fantástico currículo que o levou ao verdadeiro e justo destaque de “Pai da Bossa Nova”, mas sim um diálogo de dois notívagos, já em estado de torpor pelo álcool.
Comentei com ele sobre um poema do Vinícius de Moraes, musicado pelo Toquinho, que relata: ”o meu vizinho do lado se matou de solidão, li­gou o gás o coitado, o último gás do bujão… “… embaixo assinado Alfredo, mas ninguém sabe de que”. Ele fixou os olhos fortes no meu rosto e disse: “Eu me chamo Alfredo” e repetiu “, Alfredo José da Silva”, “nasci no Rio de Janeiro, em 19 de maio de 1929. Um detalhe que me emocionou e emocio­na até hoje, nasci no dia 19 de maio de 1959.

Eu falei você não é só, você tem a brisa, sua eterna companheira, seus olhos marejaram.

Depois de muitas noites e confissões. Fui ao nosso bar e a mesa vazia nenhum vestígio, nas noites e noites seguintes cheias de ausência.

Anos depois, fiquei sabendo da sua morte e o sofrimento pela doença, sendo seu corpo velado no Teatro Sergio Cardoso.

A solidão esteve com ele mesmo na morte independente das honrarias, foi sepultado acompanhado apenas pela suave brisa.

Continuei na mesma mesa sem saudade, melancolia ou tristeza tive a felicidade de conhecer o talento e conviver com alguém onde as palavras e his­tórias eram permeadas da música mais pura e da solidão, pungente e parceira.

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