Há quem afirme que a briga entre Noel Rosa e Wilson Batista nunca houve, pois eram amigos e parceiros em algumas músicas. Há aqueles que afirmam que a briga começou por causa da disputa por uma morena da Lapa, conquistada pelo mais jovem Wilson Batista. Outros dizem que o falso moralismo do jornalista Orestes Barbosa, amigo de Noel, dizendo que o samba de Batista, “Lenço no pescoço”, fazia apologia à malandragem, o levou a compor o samba “Rapaz folgado”, que deu origem a briga mais polêmica e mais famosa do samba.
Mas o que Noel teria contra a figura do malandro? Na verdade, Noel tinha simpatia por ela, que estava presente em muitas de suas músicas. Apenas a influência de Orestes Barbosa talvez não justificasse sua resposta. Aí é que entra uma versão mais apimentada da história. Wilson Batista havia se engraçado com uma morena, frequentadora da Lapa e que também teria atraído a atenção de Noel Rosa.
Só que os argumentos de Wilson foram mais fortes, e ele ficou com a moça, deixando Noel desapontado e ansioso para revidar na primeira oportunidade. A letra de “Lenço no pescoço” era a desculpa que Noel precisava para dar uma lição no moleque atrevido. E com a arma que o poeta melhor sabia manejar: o samba. Assim, Noel compôs “Rapaz folgado”, com endereço certo ao seu rival:
RAPAZ FOLGADO
“Deixa de arrastar o teu tamanco…
Pois tamanco nunca foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco,
Compra sapato e gravata,
Joga fora essa navalha
Que te atrapalha.
Com chapéu do lado deste rata…
Da polícia quero que escapes
Fazendo samba-canção,
(Eu) Já te dei papel e lápis
Arranja um amor e um violão.
Malandro é palavra derrotista…
Que só serve pra tirar
Todo o valor do sambista.
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado.”
Todos sabiam que a alfinetada era para Wilson, que não engolia provocações. “Brigar” com Noel era uma excelente chance para ficar famoso. Batendo na caixinha de fósforos e escrevendo a letra em papel de maço de cigarro, Wilson compôs a tréplica logo em seguida, intitulada “Mocinho da Vila”.
Considerada fraca na letra e na melodia, a criação de Wilson foi ignorada por Noel, que continuou a escrever sambas sem nenhuma relação com o debate musical. Um desses sambas foi o belíssimo “Feitiço da Vila”, cuja versão original fora interpretada por João Petra de Barros em 1934. Nos novos versos, Noel fez uma volta à infância, não só na referência ao choro pra mamar em ritmo de samba, mas, sobretudo, aos tempos em que a Vila Isabel gozava a má fama de atrair ladrões.
Segundo Noel, esse tempo já teria passado, e o bairro podia se orgulhar de dormir sem cadeado nos portões. Nesse momento, Wilson Batista viu uma oportunidade de entrar novamente em ação. Desde que sua canção “Mocinho da Vila” fora ignorada por Noel, Wilson Batista estava fora de cena. Ainda fiel ao sonho de ser famoso e sabedor de que nenhum compositor popular brasileiro estava tão em evidência quanto Noel, Wilson não perdeu tempo e escreveu “Conversa fiada”.
Noel não podia ignorar a nova canção. O ajustamento de ritmo e a bela melodia já continham elementos que permitiam antever o grande sambista que Wilson Batista seria. A música era indiscutivelmente bem-feita, e o bairro de Vila Isabel tinha sido debochadamente atacado. O contra-ataque tinha que ser definitivo, mortal e em grande estilo. Veio na forma de um samba intitulado “Palpite infeliz” – um dos mais populares e bem elaborados de toda a obra de Noel.
Para Noel, a disputa estava encerrada. Já Wilson pensava diferente, e a nova resposta veio com um golpe baixo intitulado “Frankenstein da Vila”. O samba era uma pilhéria com Noel, satirizando a sua feiúra provocada pelo defeito que tinha no queixo, causado por um acidente na hora do parto. Algumas testemunhas afirmam que Noel não deu importância ao samba, achando até graça do deboche. Outros garantem que a história não foi bem assim.
Cícero Nunes, companheiro de muitas cervejadas, jura ter visto Noel chorar ao tocar no assunto. Ainda no mesmo ano, Wilson escreveu “Terra de cego”, e cantou o samba para Noel no Café Leitão. Noel gostou da melodia, mas pediu para trocar a letra no próprio botequim. Como Wilson também havia andado de namoro com Ceci – uma antiga paixão de Noel Rosa –, a nova letra foi dedicada a ela. Com a música pronta, Noel viveu um “amor de parceria”: a mulher era Ceci; o parceiro, Wilson Batista. Era o fim de uma briga musical da qual pouca gente tomou conhecimento na época (com exceção do meio artístico).
É difícil saber até que ponto Noel guardou alguma mágoa ou ressentimento, principalmente com relação ao samba Frankenstein da Vila. Quanto a Wilson, façamos justiça: não foi por causa da rixa que ele se tornou alguém na vida. Seu tempo chegou pelo próprio talento.
Salve Noel e Wilson, que nos proporcionaram com ou sem polêmica e briga, um vasto legado para o samba e a música brasileira.