Dia desses, no Clube de Regatas, estava “dando um banho na palavra” em deliciosa companhia de amigos, quando um deles perguntou-me: “Buenão, que hora você costuma compor suas músicas?” Pensei um pouco para responder, até porque não tenho hora, mas respondi em partes. Disse que, geralmente, quando faço minhas caminhadas diárias, cujo trajeto é de cinco quilômetros, tenho meus lampejos de inspiração, costumo levar comigo um bloquinho de papel e caneta. “Aprendi com Chico Buarque”.
Neste caso, fico louco pra chegar em casa, pegar meu violão, procurar um tom pra melodia que às vezes nasce com parte da letra. Nas minhas caminhadas vivo momentos de reflexão, afinal este trajeto demora uma hora e, em determinados trechos, meu pensamento viaja para o desconhecido. Assim converso com os meus filhos que tiveram de partir, digo que os amo, me emociono – posso senti-los me afagando, impressionante –, me recomponho e sigo em frente.
Quando caminho com a melodia pronta na cabeça, imagino situações e os versos surgem de uma forma linda, dou um breque, anoto tudo e segue o jogo. Todo artista plástico, todo pintor e todo compositor tem obras inacabadas, elas estão paradas faz muitos anos. Eu mesmo tenho telas que comecei a pintar faz dois anos e estão paradas porque quero novas cenas para retratá-las. Tenho músicas quase prontas, isso porque não estão como gostaria e assim vou em frente.
Nesse pormenor concordo com o compositor baiano Dorival Caymmi, que a vida inteira carregou a fama de compositor preguiçoso. A própria filha ele, Nana Caymmi, numa entrevista alguns anos antes de seu pai partir, disse que ele andava mais preguiçoso do que antes, pois ela queria gravar novas canções dele, mas a produção andava devagar.
Dorival Caymmi, um gênio da MPB, tinha voz grave e muitas vezes buscava no fundo do peito uma nota que poucos conseguiam. Assim também eram Tim Maia, Nelson Gonçalves e outros bambas. Outra particularidade de Dorival Caymmi: ele compôs muitas canções falando do mar, como “Suíte do pescador”, “É doce morrer no mar” e muitas outras, mas morria de medo do mar, não entrava nem a pau! Outro artista como ele é Milton Nascimento, falar em entrar no mar o deixava arrepiado.
“Marina” talvez seja a canção mais famosa de Dorival Caymmi. Segundo um cantor carioca, ele compôs para sua filha Nana. Quando menina, ela havia passado batom e, toda serelepe, foi se mostrar para o papai, que não gostou. Nascia ali sua obra genial. Na letra ele diz: “Tô de mal com você”. Colocou esta frase pensando no que dizia seu filho caçula, Danilo Caymmi, que quando era pequenininho e ficava emburrado, repetia sempre: “Tô de mal com você”. Vejam que numa só tacada ele homenageou dois filhos.
Sobre “Marina”, ao ouvi-la temos a impressão de que foi feita para uma mulher. Dentro deste contexto, Dorival Caymmi foi fazer um show numa boate no interior da Bahia e a galera pediu que ele cantasse “Marina”. Caymmi abriu seu enorme sorriso, empunhou seu violão e disse: “Agora vou cantar ‘Marina’, aproveitando se estiver alguma Marina presente, dedico a ela esta minha música”. E não é que tinha?!
Vejam só… Caymmi mandou ver: “Marina morena, Marina você se pintou, Marina você faça tudo mais faça um favor, não pinte este rosto que eu gosto, que eu gosto e é só meu, Marina você já é bonita com o que Deus lhe deu…” E foi até o fim. Quando acabou de cantar, sobe no palco um fazendeiro daqueles bem ignorantes, com a cara de quem tinha bebido todas e não entendido nada. Com um “três oitão” na mão, disse: “Eu sou o marido da Marina e vou te matar, seu cabra da peste.” O garçom, muito esperto, segurou a mão do homem e o desarmou, Caymmi vazou pelos fundos e sumiu. Ele contava esta história e ria muito.
Sexta conto mais.