Nicola Tornatore
Neste mês, de outubro, uma das maiores mobilizações populares da história de Ribeirão Preto vai completar 100 anos – o dia em que a população saiu às ruas e entrou em guerra com a Alemanha. O embate começou alguns anos antes, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, um evento global centrado na Europa com grandes potências agrupadas em dois blocos: a Tríplice Aliança, formada pela Alemanha, Áustria e Itália, e a Tríplice Entente, que reunia França, Inglaterra e Rússia.
O conflito começou em 28 de julho de 1914 e o Brasil declarou a sua neutralidade em 4 de agosto daquele ano. No início, somente um navio brasileiro, o Rio Branco, foi afundado por um submarino alemão, mas a embarcação estava em águas restritas, operando a serviço inglês e com a maior parte de sua tripulação formada por noruegueses, de forma que, apesar da comoção nacional que o fato gerou, não pôde ser considerado como um ataque ilegal.
Apesar de neutro, o Brasil enfrentava uma situação econômica complicada. A economia era baseada na exportação de café e as vendas externas diminuíram com o conflito. A queda se acentuou com o bloqueio alemão e, depois, com a proibição à importação de café feita pela Inglaterra em 1917, que passou a considerar o espaço de carga nos navios necessário para produtos mais vitais.
As relações entre Brasil e o Império Alemão começaram a ruir com a decisão germânica de autorizar seus submarinos a afundar qualquer navio que entrasse nas zonas de bloqueio. No dia 5 de abril de 1917, o vapor brasileiro Paraná, um dos maiores da marinha mercante nacional (4.466 toneladas), carregado de café, navegando de acordo com as exigências feitas a países neutros, foi atacado por um submarino alemão a milhas do Cabo Barfleur, na França, e três brasileiros morreram.
Quando a notícia do afundamento do vapor Paraná chegou ao Brasil, poucos dias depois, eclodiram diversas manifestações populares nas capitais. O ministro de Relações Exteriores, Lauro Müller, de origem alemã e favorável à neutralidade na guerra, foi obrigado a renunciar. Em Porto Alegre (RS), passeatas reuniram milhares de pessoas. Inicialmente pacíficas, as manifestações passaram a atacar estabelecimentos comerciais de propriedades de alemães ou descendentes.
No dia 11 de abril de 1917 o Brasil rompeu relações diplomáticas com o bloco germânico e, em 20 de maio, o navio Tijuca foi torpedeado perto da costa francesa por submarino alemão. Nos meses seguintes, o governo brasileiro confiscou 42 navios alemães que estavam em portos brasileiros, como uma indenização de guerra.
No dia 23 de outubro de 1917, o cargueiro nacional Macau, um dos navios arrestados (confiscados), foi torpedeado por um submarino alemão U-93, perto da costa da Espanha, e o comandante foi feito prisioneiro. Com a pressão popular, no dia 26 de outubro de 1917 o país declarou guerra à aliança germânica. O governo anunciou “providências” em relação aos alemães que moravam no Brasil em 3 de novembro e naquela mesma noite muita gente se reuniu no principal ponto de encontro de Ribeirão Preto – a praça XV de Novembro.
Com os ânimos exaltados, não demorou para que a multidão desse início a uma espécie de “arrastão”, atacando prédios (comerciais, industriais, residenciais e até escolas) com a palavra “alemão” no nome ou que tivessem alguma relação com imigrantes germânicos.
Bastava ter “allemã” no nome (naquele tempo se grafava assim, com dois “eles”) para se tornar alvo da fúria popular. A primeira vítima foi a afamada “Casa Allemã”, na rua General Osório. Depois foram depredadas a Confeitaria Allemã e a Salsicharia Allemã, Sobrou também para a Relojoaria Allemã, Pensão Allemã, Photographia Allemã, Padaria Allemã, Banco Constructor e Bombonniere Allemã. Até para estabelecimentos que tinham uma distante ligação com a Alemanha, como a nossa filial da Companhia Antarctica, uma das maiores empregadoras da cidade (mas fundada pelo cervejeiro alemão Louis Bücher), foram atacados.
Também não escapou a residência de João Hibbeln. O “crime” dele era ter sido sócio do descendente de alemães Antônio Diederichsen na firma Banco Constructor (também depredado). Foi na casa de Hibbeln que os vândalos se superaram – quebraram todas as vidraças e arrombaram uma porta, invadindo a sala da frente, de onde retiraram o retrato do kaiser (imperador da Alemanha), queimado no meio da rua.
Pode parecer piada, mas a fúria popular foi tamanha que não passou incólume naquela noite nem um professor de alemão… Os arruaceiros atacaram a Livraria Internacional, de Daniel Kujawski, professor de alemão do “Gymnasio” (atual Otoniel Mota). Hoje existe a rua Daniel Kujawski, no Jardim Paulista.
Por fim, a multidão deixou o Centro e foi para a Vila Tibério, disposta a incendiar o edifício da escola alemã. O prédio ficou bastante danificado, mas o fogo não se alastrou. Nem o Teatro Polytheama escapou da fúria dos manifestantes. Não existe nada que supere a força de uma manifestação popular. Há um século, pessoas simples, do povo, furiosas, decretaram guerra aos alemães. E por pouco não puseram fogo em metade da cidade.