Edwaldo Arantes *
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Participei de uma audiência no Fórum de uma cidadezinha chamada Jacuí, uma das mais antigas de Minas Gerais, surgiu em 1750 como povoado, chegou a ser capital mineira.
Vou tentar explicar o desenrolar da insólita sessão, que assemelhou-se a um picadeiro dantesco.
O Promotor de Justiça, novato na cidade, havia acabado de assumir a Comarca e fazia sua primeira audiência.
As testemunhas arroladas pela defesa presentes, após os procedimentos de praxe, iniciaram a recepção.
O doutor e jovem membro do Ministério Público deu voz a sua inquirição. Qual o seu nome? Jeremias.
Nome completo. Jeremias de Aquino.
Qual a sua idade: Pode botá uns sessenta, pelejando um tiquinho dá prá chegar aos setenta.
O senhor nasceu aqui? Sim sô, vixe, vim da parteira “das dores”, criadeira daqui.
Qual a sua profissão? Mexo um cadinho com leite, um tanto de queijo e doce em carda.
É fazendeiro? Jisuis me acode. Uns cadinhos de terra só.
Quantas cabeças o senhor possui? Uai, lá em casa são oito, eu, muié e um punhado de seis fios.
Perguntei a quantidade de cabeças de gado? Óia, no jeitu, umas vaquinhas de teta.
Quero saber o tamanho do plantel? Planto capim, elas comi e fica tinindo enchendo o latão.
O Promotor já impaciente solicita a próxima testemunha.
Qual o seu nome? Zeca da Genciana, seo criado.
A escrivã, filha de Jacuí, constrangida tenta amainar, senhor Zeca, o nome completo. José Teófilo da Silva
Qual a sua profissão? Prá mode podê vê, para esticar uns troquinhos ajeito de tudo, as veiz ferro cavalos.
O que significa isto? Eles aponha a ferradura, fica bão de trote, andando qui nem sordado.
Aqui, foi informado que o senhor é criador de ovelhas. Num sinhô, cabras novas, véia lá em casa é só a Germana,
Quantas o senhor possui? Uns pouco de macho e um tanto de fêmea.
Eu perguntei a quantidade? Intendi, até ontem umas trinta, Sabe como é né seo doutô, cobra, carrapato, tombo, elas perde.
Quantas o senhor tinha, então? Inté onti di vera num sei o certo num senhôr, vim prá cá e findou argumas.
O Promotor começou a mover-se, balançando nervosamente a cabeça, elevando o tom.
Chame a terceira testemunha. Seu nome? Antonho Souza Naves. Antônio? Antonho memo, tonho da venda.
Qual sua renda no estabelecimento? Dá pro gasto, aponho no paper prá mode não passar manta.
Eu perguntei qual o faturamento? Bão, quando não chove, as veiz sarva, no São Pedro é mió.
Os cabelos do Promotor em arrepios, desorientado, prestes a ter uma síncope, mais perdido que cachorro caído da mudança.
Não alterou a voz, berrou mesmo: Que seja a última testemunha.
Entra um caboclo mirrado, de chapéu de palha, calça surrada remendada, um ramo no canto da boca, as unhas amareladas pelo “paiero”, dirige-se à Magistrada.
Óia dona Helena, eu passei lá pelas bandas da sua morada, larguei um leitãozinho e uma cesta de bacate, que o pai mandou.
A escrivã trêmula, informa ao membro do Ministério Público que ainda faltavam nove testemunhas.
A Audiência, ou melhor, a pendenga, continuou, ipsis litteris arrastando-se até ao entardecer, com a ausência do digníssimo Advogado do Estado, em delírio deixou o Fórum amparado, em completa confusão e súbita desordem mental.
De sentinela estava um servidor fardado, dirigindo-se com mesura, indagou-me baixinho.
Seo moço? Donde cê é? Moro em Ribeirão Preto, mas nasci em São Sebastião do Paraíso.
Eu sou de lá. Cê é fio de quem? Meio sem jeito tirei da carteira, um “Santinho de Luto” e o entreguei.
Deus meu, dona Maricada? Fio dela? Sim.
Fessora de bondade qui só veno, todo povo foi aluno dela, coitada, que sodade.
Em uma crise choro, desabou vertendo copiosas lágrimas sob os olhares atônitos da Magistrada, não entendendo bulhufas.
As testemunhas, ipsis verbis, seguiram tal qual Minas, “fale tudo e não diga nada”.
* Agente cultural