Edwaldo Arantes *
[email protected]
As memórias surgem nas noites que custam a passar inundadas de ruídos misteriosos que se alternam em silêncios eternos de segundos.
Trazem alegrias e tristezas, às vezes são traiçoeiras, quase sempre confusas, retratando e revolvendo tempo, espaço, fatos e ações perdidas.
Resgatam um turbilhão de lembranças quase sempre embaralhadas como cartas de um baralho, projetadas em nossas mentes.
A verdadeira definição da sétima arte, o conceito que o cinema é a arte de produzir filmes e a um objeto que projeta velozmente diversos fotogramas que criam a impressão de movimento em nossos cérebros.
Instantes recheados de acontecimentos, alguns abominamos, outros provocam euforia e saudade.
Os contos de fadas e seus finais felizes, porém, a realidade quase sempre não traz o final sonhado onde o príncipe apaixona-se pela bela jovem plebeia que lustra o chão do seu palácio e o amor transforma em núpcias, transportados em majestosas carruagens tendo como destino basílicas seculares, onde alianças surgem trazidas pelos bicos das pombas brancas.
Devem ser os motivos e inspirações de quem ousa tecer palavras, juntando frases e esculpindo livros, isentos de vaidades e exposições, preferindo permanecerem distantes e indiferentes, como definiu em verso o Poeta Maior: “e esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação”.
Optando em permanecer recluso, apenas a companhia dos livros, do tinto seco português e a resma de papel sulfite em suas longas e inquietas noites.
Alguns preferem a caneta, tal qual o abade ilustrando pergaminhos com sua pena de ganso e a tinta imortal, escondido em alguma torre de um remoto mosteiro.
O computador destrói a distância e a intimidade em afagar as palavras impedindo o convívio com os seus mais absurdos significados, a caneta desliza sobre o alvo papel, despertando a certeza de permanecermos incólumes e lúcidos.
Afasto os devaneios voltando ao presente, a memória traz um tio músico que escrevia em um conjunto de cinco linhas horizontais símbolos que minha ignorância musical não entendia, pareciam fios que conduziam energia onde pássaros pousavam.
Ao soprar com olhos cerrados, fazia saltar do saxofone tudo que havia desenhado, brotando sons harmoniosos, algo que nem a alma consegue entender, dizia ser melodia, achava eu que era magia.
Sentia-me confuso como quando sentado sob uma lona desgastada, quase sem luz, via um coelho saltar da cartola ou uma bengala virar rosa.
Balanço a cabeça já desordenada pelo tinto seco, transporto-me aos dezoito anos onde ela surgiu como um passe de mágica, nos aproximamos entre livros, passeatas, pichações, reuniões e discussões clandestinas.
Cursava o primeiro ano, a família a queria médica, ao contrário, seu desejo era o jornalismo.
Sorvo novamente a taça, lembro-me de olhos verdes, uma pequena casa quase vazia, mas mobiliada com ternura e esperança.
No quarto uma escrivaninha, pequena mesa e uma cama de solteiro que chamávamos carinhosamente de minúscula.
O primeiro beijo que ficou eterno guardado aos lábios sob a soleira da porta, com uma colher de pau às mãos, tentando a primeira macarronada.
Ali morava nossa liberdade em noites de paixão precoce, tórrida e avassaladora, descobertas e tentativas em decifrar os mistérios insondáveis do amor e a certeza da conquista de um novo tempo, ungido pela luta e igualdade.
Nossos sonhos sucumbiram, talvez hoje seja uma famosa médica em seu luxuoso consultório, a bela casa na praia com marido, filhas, netos e genros, a matéria não foi publicada no mais destacado jornal, restou o estetoscópio tal qual um colar adornando seu pescoço de cisne imperial.
A igualdade sonhada não veio, ao contrário, a desilusão de um mundo recheado de fascistas, déspotas e genocidas, apoiados pela ignorância popular.
Foi um tempo feliz sem mensagens virtuais, apenas os bilhetes deixados em todos os locais, nenhum deles logrou respostas, nunca mais a vi.
Balanço a cabeça tentando dissipar da memória as lembranças que teimam em permanecer na penumbra do quarto, vislumbro as duas esmeraldas a fitar-me tristes, perdendo o brilho, talvez antecipando o fim.
Não foi um amor fugaz, apenas não poderia ser vivido.
O vinho evapora e a noite avança indiferente, restou apenas o colchão sem lençol, a saudade e a taça vazia.
* Agente cultural