Por: Adalberto Luque
“Atenção grupo, avisem suas famílias a partir de hoje até o dia 30, estejam atentos. Todas as polícias pediram ontem na reunião, andarem com os carros fechados, travados, vidros levantados, evitar passear a pé com as crianças, não andar mostrando celular! TEM 50 mil presos saindo da prisão! A última saidinha dos bandidos. Eles vão fazer miséria nas cidades! Depois não mais haverá saidinhas! Muitos não vão voltar pra prisão! Será uma semana de agonia! Fechem as casas! Não procurem sair sem necessidade! Até o dia 30! Não é fake! É real! Tomem cuidado ao subir e descer do carro olhar por todos os lados! É o aviso de todas as polícias e delegados na reunião da Conseg de ontem! Isso afeta a capital e interior também. Repassem aos parentes e amigos!”
O texto acima está circulando freneticamente pelas redes sociais, com algumas variações. Mas sempre procurando dizer que fontes oficiais passaram a informação. Na verdade, é apenas mais um capítulo da polêmica que envolve o benefício da saída temporária de presos.
E que, em 2024, foi um assunto dos mais controversos. A última saída temporária do ano ocorre, no Estado, entre 23 de dezembro de 2024 e 3 de janeiro de 2025.
Fugiu na “saidinha”
Entre os dias 10 e 15 de julho deste ano, Ribeirão Preto registrou uma onda de sequestros relâmpagos. Foram quatro, sempre da mesma forma: a vítima era abordada em seu carro, durante a noite ou madrugada, por bandidos que chegavam em outro carro. Sempre na zona Sul.
Rendidas, as pessoas eram mantidas no próprio veículo, enquanto os sequestradores as obrigavam a fazer transferências via PIX. Depois deixavam as vítimas num local ermo e fugiam com o carro. Apenas em um dos casos, quando uma família foi abordada, os criminosos desistiram do sequestro relâmpago, mas levaram documentos, cartões bancários, dinheiros, joias e celulares.
Um homem de 26 anos foi preso no dia 16 de julho, quando tentava fugir com R$ 7 mil em dinheiro. Ele havia aproveitado uma “saidinha” e fugiu da penitenciária onde cumpria pena por roubo a mão armada, chefiando a onda de sequestros relâmpagos. Além dos carros depois recuperados pela polícia, as vítimas tiveram prejuízos de R$ 70 mil.
Foragidos e capturados
Os números, muitas vezes, chocam a população fazendo que aumentem os contrários ao benefício. Os motivos são vários. Na terceira saída temporária, por exemplo, o Batalhão de Ações Especiais de Polícia (BAEP) prendeu quatro beneficiados que cumpriam pena no Centro de Progressão Penitenciária (CPP) de Jardinópolis. Estavam na Rodoviária de Ribeirão Preto acompanhados de uma mulher e bebendo cerveja. Voltaram para “casa” horas depois de terem saído.
Na última saída de 2023, também no período das festas de final de ano, nada menos que 700 detentos voltaram mais cedo para as penitenciárias, por estarem descumprindo regras ou praticando crimes. Os dados foram divulgados à época pela Secretaria da Segurança Pública (SSP).
Levantamento junto à Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), mostra que, nas últimas quatro saídas temporárias, 5.108 presos foram beneficiados e 143 deles não regressaram, 2,8% do total. Número abaixo da média do Estado, que tem 5% de fugas durante a saidinha.
Os dados são relativos a sete unidades prisionais da região, instaladas em Ribeirão Preto, Serra Azul, Franca, Jardinópolis, Pontal, Guariba e Taiúva. Por outro lado, é cada vez maior o número de presos capturados por terem sido flagrados descumprindo medidas cautelares impostas ou praticando algum tipo de crime. Apenas a Polícia Militar recapturou, em todo o Estado, 829 detentos que estavam em saída temporária no mês de setembro.
Batalha política
O ano chega a sua quarta saída temporária de presos. Mas a agitação começou logo nos primeiros dias de 2024, quando terminou a última saída temporária do ano passado, que foi de 22 de dezembro de 2023 a 3 de janeiro de 2024.
Desde então uma batalha passou a ser travada nos corredores e plenário do Congresso Nacional, em Brasília, uma vez que setores mais conservadores viram a possibilidade de restringir o número de presos beneficiados com a saída temporária, criada após a promulgação da Lei de Execução Penal (LEP nº 7.210/84).
Neste ano, no Estado de São Paulo, três das quatro saídas programadas foram cumpridas: entre 12 e 18 de março, entre 11 e 17 de junho e entre 17 e 23 de setembro. Nesta segunda-feira (23), começa a última de 2024, se estendendo até 3 de janeiro.
Senadores e deputados conseguiram “virar o jogo” para endurecer ainda mais as regras da saída temporária. Em 20 de fevereiro, o Senado aprovou projeto relatado pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), restringindo o benefício para presos condenados.
O texto, aprovado com 62 votos favoráveis, dois contrários e uma abstenção, seguiu para a Câmara Federal. Relator do texto em 2022, Guilherme Muraro Derrite (PL-SP), conversou com o governador Tarcísio de Freitas e foi exonerado temporariamente do cargo na SSP, para que pudesse retomar seu mandato de deputado federal, reassumindo a relatoria do projeto da “saidinha”.
O texto final foi aprovado no dia 20 de março, dois dias após o término da saída temporária. A Câmara dos Deputados determinou que o benefício será concedido apenas para cursar supletivo profissionalizante, ensino médio ou superior, aplicável a quem cumprir penas de 4 a 8 anos, desde que não seja reincidente.
O condenado que cumprir pena por crime hediondo, com violência ou grave ameaça contra pessoa, não pode realizar trabalho externo sem vigilância direta. O projeto também prevê que a progressão do regime fechado para o semiaberto depende de exame criminológico favorável, ter comportamento exemplar e cumprimento mínimo da pena no regime anterior. Depois da PL ser aprovada com 311 votos favoráveis e 98 contrários, Derrite retomou o cargo de secretário em São Paulo, enquanto o projeto seguiu para a Presidência da República.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou, em 11 de abril, a lei que restringe a saída temporária, porém com vetos que reduzem as limitações aprovadas pelo Congresso Nacional.
Os vetos de Lula ocorreram nos trechos mais significativos da Lei, que retiravam totalmente a possibilidade de o preso visitar a família e realizar atividades sociais. A presidência alegou que a proibição seria inconstitucional.
No dia 28 de maio o Congresso Nacional derrubou os vetos presidenciais, voltando a restringir o benefício apenas para quem for sair para estudar. A derrubada ao veto recebeu 314 votos favoráveis, 126 contrários e 2 abstenções na Câmara Federal. No Senado foram 52 votos a 11, com 1 abstenção.
Confusão
A polêmica seguiu, mesmo com a derrubada do veto. Segundo jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ), “as normas mais gravosas não podem retroagir para prejudicar o executado”. Desta forma, a Lei 14,843/2024 não alcança, de acordo com a jurisprudência, presos que começaram a cumprir a pena anteriormente. Assim, os que cumpriram os pré-requisitos, podem ter a saída temporária autorizada no Natal. O benefício está mantido, mas muita água vai passar sob a ponte em 2025.
Há divergências sobre alcance da Lei
Advogado criminalista e presidente da Comissão de Direito Criminal, Política Criminal e Penitenciária da 12ª Subseção da OAB Ribeirão Preto, Giuseppe Cammilleri Falco explica que as saídas temporárias foram criadas para que o condenado, em um estágio intermediário de cumprimento de pena que se chama de regime semiaberto, possa voltar usufruir da sua liberdade e voltar a estabelecer vínculos com quem o rodeia. “Lembrando, o sistema de execução penal brasileiro é progressivo, ou seja, progressivamente a pessoa reestabelece sua liberdade de forma gradual.”
Para ele, o benefício é uma forma de retorno, ainda que parcial e progressivo, da pessoa para sua vida comum. “E, ao contrário do que se pensa, o CNJ aponta que mais de 95% dos presos retornam sem qualquer problema às casas carcerárias após a saída temporária”, acrescenta.
Falco pontua que o número de pessoas que têm o benefício já é bastante reduzido. “Somente as pessoas condenadas em regime semiaberto, que apresentam bom comportamento e endereço localizável podem desfrutar deste benefício. Cerca de 15% do sistema carcerário está em regime semiaberto e nem todos eles saíram, dado a outras questões processuais”, aduz.
Ele destaca que a recaptura ocorre porque a saída temporária tem critérios e obrigações a serem cumpridas, como recolhimento noturno e impossibilidade de frequentar lugares. “No mais, as taxas de ‘algum problema’ com a saída temporária são baixíssimas”, analisa.
O criminalista entende que a nova lei restringiu ainda mais as pessoas que podem desfrutar do benefício. “Porém, ainda existem divergências nos tribunais sobre qual o alcance da lei, se atinge a todos os custodiados ou apenas aqueles que passaram a cumprir pena após a promulgação da nova lei. Isto acontece, porque no Brasil (como em todo o mundo ocidental), a lei mais grave não pode prejudicar pessoas já condenadas ou que já praticaram o delito. Ainda há divergência.”
Colapso do sistema prisional
Segundo o presidente do Sindicado dos Funcionários do Sistema Prisional do Estado de São Paulo (Sifuspesp), Fábio Jabá, já que os tribunais decidiram que a alteração do artigo 122 da LEP não retroage para prejudicar o preso, a saidinha deve continuar para todos os que obtiveram o direito ao semiaberto até a promulgação da Lei.
“Mais importante nessa nova lei é a questão da progressão de regime, visto que a progressão necessita de profissionais qualificados (Psicólogos, Psiquiatras e Assistentes Sociais) e estes profissionais são poucos dentro do quadro da Secretaria. Podemos descrever duas situações possíveis: um aumento na superlotação devido à demora na progressão de regime pela falta de efetivo ou o judiciário relaxando a exigência de exame devido à falta de efetivo para realizá-lo”, dispara.
Segundo Jabá, existe defasagem de 26% no quadro de policiais penais. Em caso de aumento da superlotação, haverá redução na segurança do sistema. “Hoje já trabalhamos com uma média de presos por policial duas vezes maior que o recomendado pelo CNPCP”, alerta. Para ele, as duas opções preocupam: uma lei não ser cumprida por falta de condições e, em outro caso, o cumprimento sem estrutura necessária. “Isso pode levar ao colapso o maior sistema prisional da américa latina.”
TJSP mantém “saidinha”
O Tribunal de Justiça de São Paulo vai manter a saída temporária por não haver alteração da portaria que regulamenta o benefício. “A decisão das saídas é uma questão que envolve matéria jurisdicional. Os juízes do Departamento Estadual de Execução Criminal (Deecrim) avaliarão caso a caso, frente à alteração legislativa”, explica o TJ.
As mudanças devem ser verificadas no momento oportuno assim como serão analisados os reflexos da lei para cada sentenciado. Se a questão for de direito penal material, a lei não será retroagida. Do contrário, o TJ explica que se for direito processual, o benefício não será mais concedido. Em relação ao total de presos beneficiados na “saidinha” de final de ano, o TJSP explica que isso é definido pela SAP. A Secretaria, por sua vez, ainda não definiu quantos presos receberão o benefício. “Os dados serão disponibilizados após a contabilização de todos os reeducandos que efetivamente saíram”, informa a SAP.
2.9 mil foram presos descumprindo regras
A SSP destaca que, desde 2023, mantém uma parceria entre o Governo e o TJSP, garantindo a recondução de detentos que descumprem as normas legais da saída temporária. “Todos os presos capturados pela polícia são apresentados à Justiça em audiências de custódia realizadas no prazo de 24 horas, cabendo ao Poder Judiciário a avaliação de cada caso”, argumenta a SSP.
Desde que a medida entrou em vigor, em junho o ano passado, cerca de 2,9 mil detentos beneficiados com a “saidinha” foram presos pela PM por descumprir regras impostas, em ações de combate à impunidade iniciadas pelo atual governo.
A SSP lembra que, durante os dez primeiros meses de 2024, houve a prisão ou apreensão de mais de 168 mil pessoas, um aumento de 6,9% em comparação com o mesmo período de 2023. Do total, 65.839 foram capturados por cumprimento de mandado de prisão, que também apresentou crescimento de14,6% nos casos.
“Na cidade de Ribeirão Preto, por exemplo, 4.795 infratores foram presos ou apreendidos de janeiro a outubro deste ano, um aumento de 36,8% em relação ao mesmo período do ano passado, incluindo 2.087 detidos por mandados de prisão”, conclui a SSP.