Tribuna Ribeirão
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Audiência de custódia na berlinda 

  Com fama de liberar presos logo depois que a polícia os tenha trancafiado, a audiência de custódia se divide entre fervorosos defensores e críticos   

Audiência de custódia foi criada há nove anos para avaliar legalidade das prisões (Alfredo Risk)

Por Adalberto Luque 

No dia 11 de outubro, o engenheiro Luís Fernando Moreira Bentivoglio Silveira foi preso, em Ribeirão Preto, após ameaçar sua ex-esposa Amanda Bentivoglio Ramazini e furar os quatro pneus de seu carro. O casal que vivia em Franca, a 80 km de Ribeirão Preto, estava separado e a mulher tinha medida protetiva de urgência contra o ex-marido. 

No dia seguinte, ele passou por audiência de custódia que lhe deu o direito de responder em liberdade. Menos de 10 dias após ser solto, Silveira foi até o condomínio onde a família morava, no bairro Vila Santa Cruz.  

Apesar de separados, ele ainda constava no sistema de acesso ao condomínio por biometria e pela entrada do estacionamento. No apartamento do casal, Amanda, grávida de três meses, sua filha de um ano e sua mãe Rosana Baldim Ramazini apanhavam alguns pertences para levar a Ribeirão Preto. Morava com sua mãe, após a separação. 

Silveira chega e, após discussão, apanha uma faca e desfere vários golpes em Amanda. Ele também atinge sua filha, que estava no colo da ex-mulher. Além disso, acerta a sogra, que tenta intervir. 

Dias depois, quando as três mulheres receberam alta hospitalar, Rosana desabafou. Pediu que a opinião pública pressionasse para que ele fosse levado a júri popular e que não lhe fosse concedido habeas corpus para aguardar o processo em liberdade. E lembrou que ele havia sido solto pouco tempo antes, em audiência de custódia. 

Lei Anticrime 

Longe de emitir qualquer julgamento ao caso em questão, seja do direito à liberdade obtida pelo acusado, seja pelo apelo da vítima, fato é que a questão voltou novamente a ser discutida. E as chamas ficaram ainda mais intensas quando, no dia 11 de novembro, o governador Tarcísio de Freitas fez duras críticas ao instrumento jurídico. 

De acordo com o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), audiências de custódia são realizadas em todos os tribunais do País, por força da Lei Anticrime e por regulamentação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Supremo Tribunal Federal (STF). O preso deve ser apresentado em até 24 horas ao juízo após a prisão. 

Nas prisões em flagrante, o TJ explica que o objetivo é avaliar a legalidade e a necessidade de manutenção da prisão durante o curso da investigação/processo e verificar eventuais abusos ou excessos que possam ter sido cometidos. A prisão em flagrante pode ser convertida em preventiva ou liberdade provisória ou ainda substituída por outras medidas, como monitoramento eletrônico, dependendo do entendimento do juiz. 

No cumprimento dos mandados de prisão, a pessoa também deve ser levada à presença do juiz para que a legalidade da ação seja verificada. “A audiência de custódia é um mecanismo de controle judicial sobre a legalidade da privação da liberdade, independentemente da natureza da prisão”, explica o TJSP. 

Mesmo em caso de reincidência ou pela prática de crimes hediondos, o preso deve ser submetido ao procedimento. E cabe ao juiz determinar se ele continuará preso ou poderá ser solto com ou sem restrições, dependendo de cada caso. 

Nove anos de audiências de custódia 

O criminalista Falco: marco no Sistema de Justiça  (Divulgação) 

O advogado criminalista Giuseppe Cammilleri Falco considera as audiências de custódia um marco no Sistema de Justiça. Presidente da Comissão de Direito Criminal, Política Criminal e Penitenciária da 12ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Ribeirão Preto, doutorando e mestre em Direito Penal, Falco explica que, após a prisão em flagrante, o preso deverá ter sua prisão analisada em 24 horas por um juiz. 

“Durante um patrulhamento ostensivo a equipe policial visualiza um jovem correndo com uma bolsa nas mãos e uma moça o apontando como ‘ladrão’. Interrompe-se o jovem e leva-o a delegacia. Assim, surge a questão: o que vai acontecer com ele?”, indaga. 

Falco acrescenta que, para responder essa questão, as audiências de custódia foram implementadas em 2015 pelo CNJ, sob presidência do então Ministro do STF Ricardo Lewandowski. 

“Nesta audiência, não se discute o fato, mas sim a necessidade da prisão. Isto acontece porque a Constituição Federal determina que qualquer cidadão somente poderá ser preso após encerramento do processo. Porém, a pessoa poderá ser mantida presa, se existir a necessidade, por exemplo, por perigo de fuga”, aduz.  

O advogado criminalista acrescenta que as audiências também foram implementadas para fiscalizar eventuais agressões e torturas na captura de pessoas. “Outro motivo, foi desonerar as Delegacias de Polícia da manutenção dos detidos, esperava-se o julgamento em delegacias sem lugar apropriado.” 

Para Falco, após nove anos de implementação, as audiências de custódia cumprem seu objetivo. “Em relatório do CNJ apontou-se que as audiências de custódia importaram na economia de R$ 13,7 bilhões, considerando o custo de criação de novas vagas. Ainda, são incalculáveis a redução dos custos sociais em prender somente quando necessário”, encerra. 

Lenha na fogueira 

Tarcísio: “A gente criou um sistema que beneficia o criminoso” (Governo SP/Divulgação)

No dia 11 de novembro, ao discursar no Investment Managers Forum, um tradicional simpósio de gestores, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) trouxe mais lenha para a fogueira da já acalorada discussão. Tarcísio disse que se criou um sistema que beneficia o criminoso. 

“A gente tem que garantir a segurança jurídica para os operadores da lei no caso das prisões por fundado direito porque hoje vai todo mundo para a rua, em fundada suspeita. É comum. Recentemente, a coisa de umas semanas, a gente prendeu um traficante com 860 quilos de cocaína.  Não foi 40 gramas. Esse cara foi pra rua. Esse cara está solto. Nós prendemos há pouco tempo atrás quatro sequestradores, que tinham praticado sequestro, mantido dois idosos em cativeiro. Estavam fazendo compras com os cartões deles. Prendemos praticamente todos os integrantes. Os quatro foram soltos em audiência de custódia. Sabe quantas vezes você prende um ladrão de celular? Que celular é aquela coisa: todo mundo rouba celular, rouba celular. Isso deixa a gente enfurecido. Você chega a prender um ladrão de celular 30 vezes. E ele é solto. Então a legislação tem que mudar”, desabafou. 

O governador disse que é preciso encarar os criminosos de forma distinta. “Tem que encarar de forma diferente aquele que é preso por fundada suspeita. Porque hoje, todo mundo que é preso por fundada suspeita é solto logo em seguida. O que é essa prisão por fundada suspeita? Estou fazendo uma blitz de trânsito, vejo que o cara ficou nervoso e resolvo fazer uma revista no carro. Encontro no carro cinco quilos de cocaína, vejo que aquele cara é faccionado. Quando ele vai pra audiência de custódia, ou vai para um Tribunal superior, o Tribunal chega e diz: ‘Não, a Polícia tinha que se cingir à verificação de trânsito, não podia ter feito uma revista no carro’. E assim, os criminosos estão indo para a rua. A gente criou um sistema que beneficia o criminoso”, lamenta. 

Ele defendeu a integração e o compartilhamento de informações entre as polícias estatuais, o Ministério Público, através dos Grupos de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (GAECO), junto ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). 

“Se a gente não trabalhar integrado com o Coaf, a gente não vai ver quem está lavando dinheiro nas atividades lícitas. Quem está comprando usina de etanol, quem está operando posto de gasolina, quem está operando revenda de carro importado. É assim que o crime lava o dinheiro. E vai lavar em criptomoeda, e vai lavar em bet e por aí vai. Acho que todo mundo sabe o caminho das pedras. Está na hora de arregaçar a manga e fazer”, conclui. 

Pela legalidade 

Fátima, do Sinpol, defende a legalidade, mas acredita que deva haver uma revisão dos beneficiados (Alfredo Risk) 

Investigadora aposentada e presidente do Sindicato dos Policiais Civis (Sinpol), Fátima Aparecida Silva se considera dividida em relação à audiência de custódia. “Sempre defendo que tudo seja feito dentro dos rigores da Lei. Assim a audiência de custódia tem como objetivo garantir a proteção dos direitos constitucionais, como a presunção de inocência e o devido processo legal, a legalidade da prisão e agilizar o processo de investigação e julgamento”, explica. 

Ela acredita que a audiência de custódia garante, por exemplo, que presos por crimes de baixo potencial ofensivo não sigam detidos. “Nosso sistema penal está acima da capacidade de presos em todo o Estado. A soltura se dá com regras impostas pelo juiz a serem seguidas pelo elemento liberado”, acrescenta. 

No entanto, como presidente do Sinpol, ela analisa que a questão precisa ser revista. “Não se trata do ‘a Polícia prende e a Justiça solta’. A questão é soltar quem não deveria ser liberado após a audiência de custódia. São os crimes cometidos com violência contra a pessoa, sobretudo, os que se enquadram na Lei Maria da Penha e na recém-criada Lei do Feminicídio”, defende Fátima. 

Ela passou boa tarde da carreira na Polícia Civil atuando na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) e no Plantão de Polícia. “Sempre vimos pessoas chegando após cometer crimes graves de forma sucessiva. Esses criminosos jamais deveriam ter o direito a soltura”, aponta. 

Fátima já ouviu muitas vezes o termo “retrabalho” para se referir a presos soltos em audiência de custódia. “Dias depois ou eles prendem de novo o cidadão por outro crime, ou acabam tendo que cumprir mandado de prisão atrás daquele que já estava detido. A audiência de custódia tem que continuar. Mas alguns critérios precisam ser revistos”, completa. 

“Me sinto julgado” 

Um policial militar que prefere não ser identificado, acha que a audiência de custódia atrapalha o trabalho dos policiais e causa constrangimento. “Me sinto julgado toda vez que participo de uma audiência de custódia. Já teve casos do juiz perguntar para o preso (que dirigia alcoolizado) se ele se sentiu constrangido com nossa [da equipe] abordagem”, contou. 

Ele também admite que o termo “retrabalho” é usado entre policiais civis e militares. “Já teve caso de prender um grupo de assaltantes de uma loja. Recuperamos algumas mercadorias. Apresentamos na delegacia e o delegado deu voz de prisão em flagrante. Mesmo assim, eles foram soltos. A investigação prosseguiu e o delegado pediu a prisão preventiva para a Justiça. Não deu tempo, já tinham sumido.” 

Superlotação das unidades prisionais 

Uma questão que nem todos observam é o fato de a audiência de custódia evitar prisões por longos períodos, contribuindo ainda mais para o problema da superlotação das unidades prisionais. De acordo com a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), o Estado conta com 182 unidades prisionais.  

São 95 penitenciárias, 44 Centros de Detenção Provisória, 17 Centros de Progressão Penitenciária, 22 Centros de Ressocialização, 1 Centro de Readaptação Penitenciário e 3 hospitais. Também está construindo mais dois Centros de Detenções Provisórias, cada um com outras 823 vagas. 

Na região de Ribeirão Preto, existem 12 unidades prisionais. Apenas duas não estão com superpopulação carcerária. Uma delas é a Penitenciária Feminina de Ribeirão Preto. A outra é o Centro de Progressão Penitenciária de Guariba. 

Em todas as demais unidades, a população carcerária ultrapassa a capacidade para qual a edificação foi projetada. Numa delas, na Penitenciária 2 de Serra Azul, esse número excede em 90,7%. O prédio, com capacidade para 756 detentos, abriga 1.442. 

No total, a região tem 9.734 vagas, mas abriga 13.214 presos, de acordo com último levantamento da SAP feito em 12 de novembro. Um total de 41,6% a mais da capacidade das unidades prisionais. 

Se houver o recrudescimento nas audiências de custódia, o problema pode se agravar. Por outro lado, a população também prefere ver os presos “guardados” nas penitenciárias, mesmo que amontoados. Uma questão longe de ser resolvida de forma a agradar os dois lados. 

 

 

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