Elson de Paula *
“Sou um corpo morto num deserto humano.”
A citação acima pode ser lida na página 5 do livro O portal dos Desabitados, de autoria de Paulo Camargo, lançado em 2009 pelo artista plástico que viveu desde a adolescência em Ribeirão Preto, e faleceu em fevereiro de 2023, aos 78 anos.
Paulo contava que a obra foi fruto da sua observação das Pessoas em Situação de Rua, e também da conversa que teve com um “morador de rua” que pediu-lhe um cigarro enquanto ele tomava uma cerveja num bar do centro de Ribeirão Preto.
Esse “morador de rua” era o Honório, Paulo o teria convidado a sentar-se, a contragosto do dono do bar, deu-lhe o que comer e beber, e foi quando o convidado contou-lhe seus dramas, e o motivo de viver nas ruas e dormir nas calçadas. Honório teria se despedido com a frase acima, e Paulo nunca mais o viu.
O Brasil tem, segundo dados do CadÚnico divulgados em 2023 pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, 234 mil Pessoas em Situação de Rua. O próprio MDHC admite que esse número não é confiável, e prepara um censo demográfico específico a ser realizado pelo IBGE, para saber o tamanho atual e real dessa população.
Centenas de Honórios vivem nas nossas ruas, dormindo nas calçadas, e a população ribeirão-pretana só se incomoda com sua presença quando o mau cheiro, por falta de banho e de higiene pessoal, invade suas narinas.
A compaixão por essas pessoas, se existe, é de poucos, a maioria dos ribeirão-pretanos os vê com vagabundos, delinquentes, viciados e bêbados.
Muitos munícipes acreditam que se essas pessoas aderirem à uma proposta de trabalho, o problema estará resolvido.
Alguns vereadores da cidade não pensam diferente, e crêem que uma política higienista, proibindo a distribuição de marmitex, e fornecendo passagens para o retorno das pessoas que são de fora, para sua cidade de origem, resolveria o problema.
Estes, legisladores municipais deveriam por obrigação, conhecer as leis nacionais que tratam do assunto. Deveriam saber que desde 2009 vigora o Decreto 7053, que trata da Política Nacional da População em Situação de Rua, que estabelece para todo o país, políticas públicas adequadas para permitir que essas pessoas sejam tratadas de forma humana e com condições dignas de restabelecer-se como qualquer outro brasileiro.
Deveriam esses vereadores saber que em junho de 2023 o Ministro do STF, Alexandre de Morais, analisando a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental(ADPF) 976, cobrou dos Governos Federal, Estaduais e Municipais que se adequassem ao Decreto 7053 de 2009, e que passassem a executar Políticas Públicas compatíveis ao tamanho da População em Situação de Rua presente em suas instâncias.
Mal sabem eles que em 2023, o próprio Supremo Tribunal Federal formou maioria para proibir, além do recolhimento forçado de bens e pertences da PSR, a remoção forçada dessas pessoas de espaços públicos e também o transporte delas para abrigos ou qualquer outro lugar, sem a sua autorização.
Uma PSR não perde sua proteção garantida pela Constituição Federativa do Brasil como qualquer brasileiro, porque vive numa calçada. Aliás, viver numa calçada não é digno e bom para ninguém, é muito duro e triste dormir na rua.
Em dezembro de 2023, o Presidente Lula assinou o Plano Nacional Ruas Visíveis, um conjunto de propostas para tratar da População em Situação de Rua, em resposta à ADPF 976 do STF. Para a execução do Plano, Lula anunciou a liberação de 1 bilhão de reais aos municípios que aderissem às suas propostas. O valor é pequeno, e o Governo Lula não dará conta de mudar a dura realidade dessas pessoas até o fim do seu mandato.
O desconhecimento sobre a População em Situação de Rua presente em Ribeirão Preto é geral, e ao mesmo tempo, o preconceito contra essas pessoas é imenso.
Enquanto isso, o tempo passa, o Governo Municipal não aceita discutir essa situação, e muito menos criar-lhes meios para aliviar sua dor, tratar seus males e permitir-lhes construir sua própria condição de cidadania.
Nem mesmo a simples instalação de bebedouros permanentes com água potável e gelada na região central da cidade, onde a População em Situação de Rua tem grande dificuldade de acesso à água, a gestão atual atendeu. O Movimento que represento protocolou em abril passado, processo solicitando essa instalação, mas em vão, e para não parecer desumano, a administração, ao invés de recusar sua aprovação, deixa sem resposta, até ser arquivado.
Entre 2023 e 2024, até houve no município, algum avanço na criação de vagas em Casas de Passagem para homens até 59 anos, porém, a necessidade de mais vagas ainda é grande, pois Ribeirão Preto não conhece o tamanho dessa população que vive em suas calçadas.
Nas ruas da cidade, Pessoas em Situação de Rua passam frio, fome, sofrem violações de direito, violência física e moral, morrem, e ano a ano, pouco se faz para mudar esse cenário cruel.
Serão as Pessoas em Situação de Rua, corpos mortos em nossas calçadas como disse Honório?
Pensemos nisso!
* Jornalista, representante do Movimento Nacional de Luta em Defesa da População em Situação de Rua e cofundador e coordenador do Fórum de Defesa da População em Situação de Rua de Ribeirão Preto (Pop Rua RP)