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Feminicídio: quando o inimigo é íntimo 

Com um feminicídio a cada 39 horas e uma medida protetiva contra agressores a cada cinco minutos, SP vê crescer casos de violência de gênero   

Por: Adalberto Luque 

Apesar da redução de casos de feminicídio e homicídio doloso de mulheres de janeiro a agosto de 2024, em comparação com o mesmo período de 2023, não é possível afirmar que a violência contra a mulher diminuiu no Estado de São Paulo. Os dados da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) apontam que, nos oito primeiros meses do ano passado, 144 mulheres foram vítimas de homicídio doloso (quando há intenção de matar) e outras 368 foram vítimas de feminicídio. Em 2024, os homicídios dolosos somaram 111 vítimas e os feminicídios 149. 

 Apesar da redução, a violência de gênero segue preocupando. Os casos de tentativa de homicídio, por exemplo, cresceram muito. Saltaram de 257 em 2023 para 794 casos em 2024. 

 As estatísticas da SSP mostraram que a cada 39 horas uma mulher foi morta no Estado pelo simples fato de ser mulher, o que caracteriza o crime de feminicídio. E três mulheres por dia foram vítimas de tentativa de assassinato.  

 Casos de lesão corporal dolosa, a agressão covarde, atingiram, nos oito primeiros meses deste ano, 162 mulheres por dia. Foram 39.614 casos de lesão corporal dolosa. Mais: 291 mulheres por dia foram ameaçadas e sete a cada dia tiveram suas casas invadidas em crimes de violência de gênero. 

 Violência histórica 

Para a advogada Maria Angélica, da OAB-RP, é preciso mais que medidas protetivas, como um trabalho firme com vítimas e agressores  (Divulgação)

A advogada Maria Angélica Bellini, presidente da Comissão das Mulheres Advogadas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Subseção Ribeirão Preto, explica que a violência contra a mulher no Brasil é histórica. Lembra que a violência física no século XV, não apenas era aceita, como legalizada.  

 “O Código Civil de 1916 manteve o homem como líder da família e do casamento e a mulher como pessoa incapaz para diversos atos da vida civil, de modo que cabia ao marido tomar decisões sobre a vida da própria esposa”, observa Maria Angélica.  

 Segundo Maria Angélica o último ato da violência contra a mulher é o feminicídio e isso não pode ser tratado como mero fenômeno social. “É resultado do machismo cotidiano que submete meninas e meninos, desde o seu nascimento. O machismo, o ódio à figura feminina, faz parte da educação social, a qual, pautada no patriarcado, ensina homens a acreditarem que são donos dos corpos e das vidas das mulheres”, aduz. 

 

Medida protetiva de urgência 

Mas a mulher finalmente acordou e não tem esperado passivamente a violência doméstica evoluir da tortura psicológica para agressões, chegando ao feminicídio. Um dos indicadores de que a mulher, mesmo vivendo em situação vulnerável em relação ao companheiro, tem buscado proteção, é o número de medidas protetivas de urgência contra agressores que têm sido obtidas. 

 Os serviços da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) do Estado de São Paulo registraram, entre janeiro e agosto de 2024, 65 mil pedidos à Justiça de medida protetiva de urgência para vítimas de violência doméstica e familiar. O número representa a média de uma medida protetiva solicitada a cada 5 minutos. 

 Os dados ainda apontam para um aumento de quase 57% das solicitações em relação ao mesmo período do ano passado, quando foram ajuizados 41 mil pedidos.  

 “É uma forma de quebrar o ciclo da violência e prevenir a repetição de atos de agressão. As medidas protetivas servem para proteger a vítima na sua integridade física, psicológica, moral, sexual e patrimonial, que são os tipos de violência preconizados pela Lei Maria da Penha”, afirma a delegada Adriana Liporoni, coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo. 

No entanto, uma medida protetiva não é certeza de garantia de vida. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024 indicam que 12,7% das vítimas de feminicídio no Brasil em 2024 tinham uma medida protetiva de urgência ativa no momento do óbito. Os dados são nacionais. 

 Mas, de acordo com a SSP, quatro a cada cinco vítimas de feminicídio no estado em 2023 não possuíam medidas protetivas. Cerca de 75% dos casos não tinham sequer boletim de ocorrência prévio. 

 “É importante frisar que a mulher que estiver sendo agredida, de qualquer forma, no âmbito domiciliar, pode ser pelo companheiro, companheira ou qualquer familiar, deve denunciar o fato à polícia. Às vezes o silêncio pode levar a consequências mais sérias”, ressalta a delegada. 

 A advogada Maria Angélica acredita que o tema é um desafio na questão do combate à violência de gênero e proteção à mulher, embora considere medidas protetivas de urgência, previstas na Lei Maria da Penha, um avanço no combate à violência. 

 “Mas isso não é suficiente. Precisamos garantir a efetividade dessas medidas protetivas, garantir melhor qualificação especializada aos profissionais que atendem direta e indiretamente essas mulheres, aumentar o patrulhamento e criar medidas que visem a não reincidência do crime. Um exemplo: em Ribeirão Preto existe o SERAVIG (Serviço de Reeducação do Autor de Violência de Gênero), que oferece, por meio de uma equipe multidisciplinar, acompanhamento ao autor de violência, com orientações em grupo e individualizado, encontros com temáticas envolvendo a violência de gênero, participação de psicólogos e assistentes sociais.” 

Perfil 

Marina Camargo, especialista em questões de raça e gênero: “infelizmente agravamento das penas não inibe, instantaneamente, a ação violenta do agressor (Alfredo Risk)

De acordo com a edição 2024 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 1.467 mulheres foram vítimas de feminicídio em 2023. Pior: 17 estados brasileiros apresentam taxas mais altas que a média nacional. 

Isabella Matosinhos, mestre em sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, indica um perfil das vítimas de feminicídio. Elas são negras (66,9%) e têm idade entre 18 e 44 anos (69,1%). A morte violenta de mulheres é cometida majoritariamente por homens. Em 2023, foi possível afirmar que 1.730 homens mataram mulheres no Brasil. 

A Agência Patrícia Galvão divulgou outro indicador preocupante: 70% das vítimas foram mortas no local onde viviam. Ou seja, 7 a cada 10 mulheres foram vítimas de feminicídio em casa. 

Marina Camargo, advogada, diretora adjunta da OAB Ribeirão Preto, pesquisadora especialista em questões de raça e gênero, destaca que a desigualdade de gênero e racial ainda são extremamente intensas no Brasil. “Creio que as atualizações legislativas, desde que façam sentido e tenham eficácia, são positivas na defesa dos Direitos Humanos”, diz. 

Ela refere-se à Lei 14.994/2024, que entrou em vigor há três semanas e desmembra a Lei Maria da Penha, tratando dos casos de feminicídio com mais rigor, com penas que podem chegar a 40 anos de reclusão para os autores. Segundo a advogada, a nova Lei demonstra a urgência em diminuir os casos de violência doméstica, em especial de feminicídios. 

“Todavia, infelizmente, sabe-se que o agravamento das penas não inibe, instantaneamente, a ação violenta do agressor. Deste modo, as movimentações conjuntas às legislações, como as políticas públicas que trabalhem a redução da desigualdade de gênero, sejam elas no ambiente de trabalho, familiar, na saúde, na educação, em todos os campos, são essenciais para a prevenção dessas ações criminosas. Por sermos estruturalmente um país racista, machista e sexista, a parte mais difícil de ‘atualizar’ é a consciência social dos indivíduos”, aponta Marina. 

 

Letal e não letal 

O Instituto Sou da Paz revelou que os objetos cortantes ou penetrantes, como facas, são os mais usados pelos agressores, presentes em 43% dos casos no estado de São Paulo. As armas de fogo respondem por 22% dos casos de homicídios consumados no primeiro semestre de 2024. 

E dados obtidos pelo Sou da Paz junto à SSP e relativos ao Departamento de Polícia Judiciária do Interior (Deinter) 3, responsável pela Polícia Civil em 93 cidades da região de Ribeirão Preto, confirmam a queda da letalidade. Em 2023, foram 10 feminicídios, contra 8 em 2024, uma queda de 20%.  

Porém, a violência não letal cresceu exponencialmente. No mesmo Deinter-3, foram 8 casos de tentativa de feminicídio ano passado, contra 26 em 2024, um aumento de 225%. Dados levantados pelo Anuário de Segurança Pública apontam essa tendência no Brasil. Foram 9,2% a mais de tentativas de homicídio de mulheres, atingindo 8.372 vítimas. Já os casos de tentativa de feminicídio subiram, no Brasil, 7,1%, atingindo 2.797 mulheres em 2023. 

 Levantamento da SSP aponta que, entre janeiro e agosto de 2024, foram quase 108,6 mil boletins de ocorrência feitos pelas DDMs, um aumento de 17% na comparação com o mesmo período de 2023. 

 Para combater a violência de gênero, São Paulo conta com 141 delegacias físicas da DDM em todo o Estado, além de 142 salas DDM em plantões policiais, onde é possível ter atendimento acolhedor e humanizado, de acordo com a Secretaria. A ocorrência é feita através de videoconferência. 

 Além disso, o telefone 190, da Polícia Militar, também está à disposição das vítimas, com profissionais treinados para identificar casos de violência de gênero. Houve, por exemplo, vítima que simulou estar pedindo pizza pelo 190 para denunciar a violência a que estavam sendo submetidas naquele momento e o agressor acabou preso em flagrante. 

 Outra ferramenta é o aplicativo SP Mulher Segura. Disponível para os sistemas iOS e Android, a plataforma da Secretaria da Segurança Pública reúne funcionalidades como o registro de ocorrências e o acionamento da Polícia Militar. 

 Para vítimas protegidas por medida protetiva, o aplicativo também disponibiliza um botão do pânico para situações em que se sintam ameaçadas pelo agressor. Por meio de georreferenciamento, a ferramenta também cruza os dados da localização da vítima e do agressor que é monitorado por tornozeleira eletrônica. Se houver aproximação, a PM é acionada e uma viatura segue para o local. 

Tais serviços integram o movimento São Paulo por Todas, lançado pelo Governo do Estado no início do ano. Este movimento intensifica esforços na proteção das mulheres e no combate à violência, ampliando o alcance das políticas públicas e garantindo suporte efetivo para as vítimas. 

 Em Ribeirão Preto, a Guarda Civil Metropolitana (GCM) tem a Patrulha Maria da Penha, que também realiza ações específicas para combate à violência contra mulheres.  

A Patrulha Maria da Penha, em Ribeirão Preto, foi instituída em julho de 2018. Os agentes da GCM que atuam na Patrulha trabalham de maneira integrada à Secretaria de Assistência Social, Ministério Público de São Paulo (MPSP) e Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), com objetivo de combater a violência contra mulheres. Desde o início de 2018 até o primeiro semestre de 2024 já foram registrados 134 boletins de ocorrência, 14 prisões em flagrante e mais de 1.081 atendimentos relacionados a Patrulha Maria da Penha. 

 Apesar de todas as possibilidades, as estatísticas continuam preocupando. Para a advogada Maria Angélica, é preciso haver uma mudança estrutural na educação da sociedade, para reverter a ideia de que as mulheres são figuras subalternas, cuja existência se resume a satisfazer os homens 

 “Mais do que a criação de políticas públicas eficazes para o enfrentamento da violência diária contra mulheres, é preciso trabalhar na reeducação social, de modo a se evitar o cometimento desses crimes”, encerra. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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