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Falta de empatia no trânsito 

Desrespeito às regras básicas do trânsito potencializam o número de acidentes e, consequentemente, de mortes em Ribeirão Preto   

Carro e moto em corredor exclusivo para ônibus é a versão urbana de trafegar pelo acostamento em rodovias (Alfredo Risk) 

Por Adalberto Luque 

 

Começo o dia entrando no meu carro rumo ao trabalho. Dou a partida e, ao chegar ao portão da garagem do condomínio, vejo que tem um carro parado, impedindo minha saída. “Ah, mas é rapidinho, fui só até a portaria deixar um documento. Você não esperou nadinha”, disse o motorista depois que acionei educadamente a buzina do meu carro. 

Na rua, sigo atrás de outro veículo, que ia devagar. O motorista estava olhando o celular. Talvez a rota que devesse seguir ou o número na avenida que deveria parar. Afinal, o que são alguns segundos?  

Mais à frente, outro carro lento. De repente, surpresa: vira à direita sem dar seta. Afinal, isso seria dar muita satisfação a outros motoristas. Antes de ir para a redação, passo em um supermercado. Ao estacionar, percebo que havia dois veículos parados em vagas de idosos e um na vaga de deficiente. Nas três situações, não havia nenhuma indicação de que tinham direito à vaga. 

No caso de deficientes, o veículo tem adesivo. No caso de idoso, há um cartão com uso obrigatório no painel do carro, bem à vista, enquanto o motorista estiver fazendo uso da vaga. Ambos não tinham o cartão. Passando em avenida com corredor de ônibus, vários carros circulando onde não é permitido. Seria como uma extensão de andar pelo acostamento nas rodovias. Se para quem faz poucos e curtos trajetos diários no trânsito isso parece demais, o que dizer de quem vive do trânsito e no trânsito? 

Quase três décadas 

O instrutor Barbosa Júnior: se as regras fossem cumpridas, praticamente não haveria acidentes de trânsito (Arquivo Pessoal) 

João José Barbosa Júnior é instrutor de autoescola há mais de 29 anos. Muitos dos atuais condutores já passaram por suas orientações, antes de prestar exame para obter a Carteira Nacional de Habilitação (CNH), a famosa “licença para dirigir”. Nessas quase três décadas, ele viu o fluxo de veículos mudar radicalmente. 

“Esse novo trânsito está difícil. Está pesado. Não estávamos acostumados com congestionamento e hoje isso é constante. Temos que reprogramar o tempo. Também reprogramar a paciência e a vida, porque esse cotidiano não fazia parte da nossa cidade, que era considerada uma cidade pequena.” 

Sua rotina o leva a percorrer o trajeto entre o Centro de Ribeirão Preto e o Jardim Manoel Penna, zona Leste de Ribeirão Preto, onde ocorrem aulas e exames para os candidatos à primeira habilitação. Faz esse trajeto várias vezes ao dia, tanto nas aulas de carro, quanto nas de moto. 

Esse vai e vem pelas avenidas Francisco Junqueira, Maurílio Biagi e Celso Charuri (na verdade uma única avenida com três nomes diferentes) já lhe rendeu muitas situações inusitadas. E preocupantes.  

Há algum tempo, à medida em que as obras de mobilidade urbana realizadas pela Prefeitura avançaram, o trânsito ficou mais congestionado. Os motoristas acabam ficando mais estressados e precisam redobrar a atenção, o que gera um desgaste emocional maior. 

“Há uma semana, voltava pela Avenida Francisco Junqueira, sentido bairro-Centro com um aluno conduzindo. Um senhor vinha atrás com uma caminhonete e estava impaciente, buzinando o tempo todo. Mas não tínhamos para onde ir. Aí ele passou pela esquerda e jogou a traseira da caminhonete em cima da gente. Se eu não freio junto com o aluno, bateria atrás. Ele ia provocar um acidente porque estava estressado e queria andar. Mas não tinha para onde ir. O trânsito estava engarrafado. Por estar incomodado, ele quase causou um acidente”, relatou Barbosa Júnior. 

Avançar sinal de parada 

“As pessoas simplesmente não querem esperar e avançam os sinais de ‘pare’. Vemos isso o tempo todo. Às vezes até os próprios alunos questionam, dizendo que se não vem nenhum veículo não precisariam parar. Mas precisam. A regra é essa. Um segundo faz a diferença, pois pode haver um ‘ponto cego’ que você acaba eliminando quando faz a parada obrigatória no cruzamento”, explica. 

Se essa parada obrigatória tivesse sido respeitada, talvez o motociclista Luan Mendes Queiroz estivesse vivo. No dia 30 de julho, por volta de 09h50, ele vinha pela Rua Paulo de Frontin, na Vila Virgínia, zona Leste de Ribeirão Preto.  

Pela Rua José Venâncio, vinha um veículo que deveria parar no cruzamento com a Rua Paulo de Frontin, mas não parou. O motorista atingiu em cheio a moto de Queiroz. Ele ficou gravemente ferido e morreu dias depois, no Hospital das Clínicas – Unidade de Emergência. 

Morte e mudança de local 

Durante seus 29 anos como instrutor de autoescola, Barbosa Júnior já viu acontecer vários acidentes de trânsito. Um deles, todavia, o deixou traumatizado a ponto de não gostar de recordar. Foi há 15 anos, quando estava dando uma aula de moto na marginal da Avenida Castelo Branco sentido bairro-Centro, logo que ela começa, a partir da Rodovia Anhanguera (SP-330). 

“Ouvi uma brecada forte e um barulho. Parei a aula e corremos até lá. Tinha uma criança com fratura exposta. Havia sido atropelada por uma caminhonete ao atravessar a pista. Peguei os cones e sinalizei o local, depois acionamos o Corpo de Bombeiros e o SAMU [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência]”, lembra. 

A essa altura, o segurança de um shopping nas imediações havia chegado com uma maleta de primeiros socorros e começou a ajudar a criança. Quando Barbosa Júnior se levantou, percebeu que havia uma outra criança caída muitos metros adiante.  

“Eram crianças da Vila Virgínia, que tinham ido fazer uma apresentação de dança de rua na Praça de Alimentação do shopping. Estavam atravessando a rua para apanhar o ônibus circular. Uma monitora ia com um grupo e achou que dava tempo. Quando foram, duas se desgarraram e foram atropeladas. Quando chegamos na outra menina, ela tinha batido na placa de sinalização e já não respirava, foi horrível. Tentamos de tudo”, lembra o instrutor de autoescola.  

O SAMU e os Bombeiros chegaram e fizeram manobras de ressuscitação, inclusive com injeção de adrenalina. “Mas a Jacqueline (não lembro o sobrenome) não voltou mais. Ela tinha a idade que minha filha tinha na época. Isso foi horrível. E tive que ligar para avisar o pai da menina. Ele era porteiro e achou que ela sobreviveria, justificando que não podia deixar seu posto de trabalho. Tive que dar a notícia. Parei de dar aulas naquele lugar, fiquei muito traumatizado com isso”, lamenta. 

Ele lembra que a mãe de Jacqueline estava com o grupo e atravessou a avenida com duas crianças, que imaginou serem suas filhas. Quando viu a filha morta, se deu conta de que a outra criança era, na verdade, uma colega de escola. Entrou em choque, segundo Barbosa Júnior. 

Havia solução 

Em 1999, quando o novo Código Brasileiro de Trânsito (CBT) estava prestes a ser implantado, instrutores de autoescola passaram por um curso de capacitação. 

“Foi dito à época que íamos dar instruções para crianças nas escolas. A ideia era formar as crianças, com aulas de noções de trânsito, cidadania, legislação, sinalização, já preparando uma formação moral para o trânsito. Quando chegassem à maioridade, com toda carga que tinham, iriam para a autoescola sem necessidade de fazer o curso teórico. O novo Código está velho, já se passaram 25 anos e teve até algumas modificações, mas nada até agora”, analisa. 

Semáforo 

Em seu cotidiano no trânsito, Barbosa Júnior lembra que Ribeirão Preto e outras cidades brasileiras, desenvolveram uma cultura. Sempre que o sinal fica vermelho, passam pelo menos dois ou três motoristas ou motociclistas. Uma transgressão grave como multa, tão grave quanto risco de acidente.  

Há também pedestres que atravessam ruas e estradas fora de faixas ou passarelas e ciclistas que se arriscam andando pela contramão, por exemplo. “Se todos cumprissem as regras de trânsito, praticamente não teria acidente”, encerra Barbosa Júnior. 

Postura egoísta 

Velázquez: desrespeito no trânsito reflete falta de empatia (Alfredo Risk)

Para o engenheiro Fernando Velázquez, Mestre em Engenharia de Transportes e membro do Observatório Nacional de Segurança Viária, a cultura do desrespeito às regras de trânsito reflete uma falta de empatia que impacta diretamente na segurança de todos. 

“Infrações aparentemente ‘pequenas’, como não dar seta ao mudar de faixa, estacionar em local proibido ou usar vagas reservadas para deficientes e idosos, demonstram uma postura egoísta que desconsidera o bem coletivo”, avalia Velázquez.  

Ele acredita que esse comportamento é agravado pela ideia equivocada de que o trânsito é um espaço de competição e não de convivência. “O aumento expressivo nas mortes de motociclistas, por exemplo, expõe essa mentalidade, onde a pressa e o desinteresse pelo outro resultam em tragédias evitáveis”, aduz. 

Segundo Velázquez, o trânsito é um espaço compartilhado e exige atenção plena e respeito mútuo entre todos: motoristas, motociclistas, ciclistas e pedestres. “Mais do que punir infrações, é essencial promover uma consciência coletiva que priorize a vida e o cuidado com o próximo, reduzindo assim acidentes e mortes”, conclui. 

 

 

 

 

 

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