Por: Adalberto Luque
Antes da implantação do Plano Real, o brasileiro tinha que buscar alternativas para não ter seu dinheiro engolido pelo dragão da inflação. As maquininhas remarcadoras trabalhavam freneticamente nos mercados.
Mas os planos Cruzado, Bresser, Verão, Collor I e Collor II não impediram o trabalho constante dos remarcadores de preço. Nem mesmo os “fiscais do Sarney”. Logo que o salário fosse pago, era correr para o supermercado, colocar o necessário no carrinho de compras e pagar. Se demorasse alguns dias, o carrinho ficaria mais vazio.
A inflação chegou a 47,4% ao mês, com acumulado de 4.922% em 12 meses. A moeda até então vigente era o Cruzeiro Real e os brasileiros podiam se considerar “milionários”, com as cédulas de 5 mil, 10 mil, 50 mil, 100 mil e 500 mil. Com duas das maiores cédulas, qualquer brasileiro tinha 1 milhão de Cruzeiros Reais.
Mas o Real não foi instituído de uma vez. Houve um planejamento intenso e uma preparação. Os brasileiros tiveram que conviver por alguns meses com a Unidade Real de Valores (URV), uma pseudo moeda, usada para conversão de valores.
Tudo isso começou a mudar em 1º de julho de 1994, quando começou a circular o Real, consolidando um plano de controle de inflação iniciado em maio de 1993, quando o presidente Itamar Franco nomeou para ministro da Fazenda o sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Motivos não faltam para comemorar os 30 anos do Plano Real.
Atualização diária
Roberto Biagiotti montou um depósito de materiais para construção em 1992. Sabia que encontraria dificuldades, mas apostou num negócio que, até então, quase não havia na região do Santa Cruz do José Jacques, zona Sul de Ribeirão Preto.
Mas as dificuldades foram maiores do que imaginou. “Os preços atualizavam todo dia. Sempre que comprava, era outro preço”, lembra.
Planejar estoque não era tarefa fácil. Mesmo aplicando o dinheiro, o capital de giro comprava menos a cada mês. Do outro lado, os fornecedores também enfrentavam seus problemas, uma reação em cadeia.
Veio então o novo plano econômico, que começou com a URV. “Aí a coisa complicou muito. Tinha que calcular todo dia para não perder dinheiro. Se errasse, era prejuízo na certa”, explica.
Calmaria só veio a partir de 1º de julho de 1994. O novo negócio cresceu e se consolidou na região, que viveu uma enorme expansão imobiliária, inicialmente para o Jardim Irajá, depois passando para Santa Ângela, Jardim Botânico e outras áreas.
“Hoje vivemos o fantasma da volta da inflação. Isso é preocupante. Estão deixando o Real perder o valor. Atualmente só trabalhamos para pagar contas. Se continuar assim, nem isso vai dar”, pontua.
Dólar do dia
O vereador Elizeu Rocha atua no mercado imobiliário desde 1982. A partir de 1985, o setor começou a sentir o impacto dos altos índices mensais de inflação. No início dos anos 1990 a situação tornou-se crítica.
“Naquela época, as pessoas tinham medo de vender um imóvel, porque se passasse uma semana, já estariam perdendo dinheiro. A desvalorização era muito rápida. Tivemos que criar saídas. Uma delas foi usar o dólar do dia. Fazíamos a venda e acordávamos que o pagamento seria baseado no dólar do dia. Chegávamos ao cartório e calculávamos o valor. Se fosse pela manhã era uma cotação. Se fosse à tarde, era outra”, conta Rocha.
Com o advento do Plano Real, antes veio a URV, que também trouxe problemas para o mercado imobiliário. “Ficamos todos perdidos. Os negócios, locações, vendas e parte comercial, tudo o que era feito, tínhamos que converter pela URV. As pessoas não tinham conhecimento da Lei, achando que o valor deveria permanecer como estava, de um para um, mas não era”, rememora.
As reclamações dos clientes aumentaram, pois havia medo de que a URV iria diminuir o valor que estariam recebendo. “Fizemos inúmeras reuniões, com vários setores, para poder ajustar, acertar e levar ao conhecimento das pessoas que aqueles valores eram corretos diante da Lei que criou a URV, que foi o Plano Real.”
E a tarefa não foi mesmo fácil, afinal, reajuste de aluguel, na época da chamada inflação galopante, era mensal, principalmente nos casos de locação de imóvel comercial.
A partir de 1994, tudo mudou. “Com a Lei do Inquilinato, os reajustes passaram a ser anuais, utilizando índices oficiais. Isso normalizou o segmento imobiliário. Com inflação alta, vivemos tempos muito difíceis, mas com a chegada da nova moeda, tudo melhorou muito no setor”, finaliza.
Pelo colarinho
“Trabalhava no setor de habitação da Caixa Econômica Federal na época da inflação alta. Foi muito sofrido. Os reajustes dos financiamentos de imóveis eram a cada 30 dias, baseado no reajuste salarial das pessoas. Mas o governador do estado de São Paulo, na época, dava reajuste da própria cabeça. Então eu tinha que alterar manualmente cada contrato, mediante a apresentação de declaração do funcionário do Estado informando se teve ou não reajuste”, recorda a bancária aposentada Maria Sílvia Colaço Brunhera.
A situação se complicou quando isso passou a ser frequente. Sílvia lembra que, certa vez, um bombeiro irritado com a situação, perdeu a paciência e a “puxou pelo colarinho”. Foi um susto grande. “As pessoas ficavam bravas e transferiam toda a raiva que tinham dos governos. Era da linha de frente.”
Tempos depois, já com o Real balizando a economia, ela descobriu que o bombeiro – hoje falecido – era pai de uma amiga de igreja. “Depois que veio o Real, ele até ficou meu amigo.”
Apesar de todas as dificuldades nos anos que antecederam a criação do Real, a bancária acabou se beneficiando na compra de um apartamento no Jardim Irajá, zona Sul da cidade. Em tempos de inflação ameaçadora, a saída era aplicar na poupança ou no overnight.
Sílvia e seu marido, Felício Carlos Brunhera, fizeram a proposta de compra, mas só poderiam pagar 15 dias depois. O proprietário aceitou manter o preço. “O que tínhamos não daria para comprar, mas com a aplicação no ‘overnight’ conseguimos comprar nosso apartamento”, comemora.
De acordo com o Infomoney, o overnight era o investimento mais comum no Brasil antes do real, principalmente porque era simples: bastava solicitar para o gerente do banco e ter a certeza de que o valor seria corrigido no dia seguinte. “A dívida pública era muito curta, rolava quase no dia a dia. Os bancos compravam papel do governo e vendiam para o público com compromisso de compra no dia seguinte”, explica Glauco Cavalcanti, gestor de fundos, com passagem pela Tesouraria do Banco Garantia entre 1991 e 1998.
Piso queimado
A funcionária pública Martha Jane Araújo tinha conseguido comprar uma casa em 1991 no Jardim das Palmeiras, zona Leste da cidade, mas tentava juntar dinheiro para a reforma. Seu marido tinha salário fixo e fazia extras para alguns clientes. Pedia para receber em dólar que era mais garantido.
Chegou 1993 e ela engravidou de sua primeira filha. Então resolveram fazer as contas e viram que daria para reformar e ampliar a casa até o nascimento da criança, em setembro daquele ano.
Devido aos problemas na economia do País, o casal não conseguiu concluir a obra como gostaria. Com a proximidade do nascimento da filha, Martha viu que não iria conseguir comprar e assentar os pisos da casa. “Precisávamos nos mudar. Morávamos de aluguel. Então eu sugeri ‘queimar o piso’ de cimento, deixando o chão liso. Foi o que deu para fazer. Nos mudamos e, depois de 20 dias, minha filha nasceu. Mas nem os dólares que meu marido recebia dos extras nos salvaram”, brinca.
Nesta época, Martha trabalhava em uma empresa de consórcio de veículos, num setor nevrálgico: o departamento financeiro. “Diariamente só podia ir embora depois de garantir que o dinheiro da conta seria aplicado no overnight. Qualquer falha nesse sentido e o prejuízo seria líquido e certo.”
No dia seguinte ela verificava o valor corrigido, acrescentava ao longo do dia a movimentação que entrasse, programava o pagamento das contas e nova aplicação no overnight ao final do dia. Assim foi durante anos.
Com a estabilidade proporcionada pelo Plano Real, Martha conseguiu, em 1999, reformar sua casa. Mas isso ocorreu depois de uma mudança de rumos. “Começamos a juntar dinheiro depois que o Real entrou em circulação. Nosso objetivo era reformar a casa. Em 1996, quando fomos começar a obra, vimos que o dinheiro guardado daria para comprar um apartamento no Jardim Irajá. Assim o fizemos. Conseguimos quitar o apartamento e o financiamento da casa. Em 1999, reformamos o local, transformando em uma área de lazer, porque no prédio onde morávamos não tínhamos nada para nossos filhos. Com o Real, finalmente concluímos nosso sonho da época”, encerra.