Por Adalberto Luque
O processo de colheita de cana-de-açúcar, feito mecanicamente, sem necessidade de queimadas e cortes com podões nem de perto lembra o cenário vivido em um passado recente em cidades próximas aos canaviais das regiões Centro, Norte e Nordeste do Estado de São Paulo.
A colheita era feita manualmente, por trabalhadores rurais, os chamados boias-frias. Em São Paulo, a safra ia de abril a novembro e, para garantir a colheita do principal produto produzido no Estado, vinham dezenas de milhares de trabalhadores rurais do Nordeste.
As queimadas garantiam a incômoda chuva de fuligem sobre os quintais das casas nas cidades e os problemas para acomodar trabalhadores que, invariavelmente, não tinham registro em carteira, eram colocados em alojamentos com condições precárias e sofriam com problemas sociais, chegando, em muitos casos, à escravidão.
As usinas e fazendeiros usavam intermediários, os chamados “gatos” para contratar e transportar os trabalhadores rurais. O transporte humano era feito em caminhões precários.
Os trabalhadores eram instalados em alojamentos improvisados, como estábulos. Carteira de Trabalho assinada era quase uma lenda nessa época. Praticamente não havia direitos trabalhistas, como 13º salário. Férias? Não sabiam o que era isso.
Produtos de alimentação e higiene eram vendidos por mercados mantidos pelos próprios “gatos”, criando uma relação de escravidão, por conta de dívidas contraídas. Os rurais começavam a trabalhar antes do dia amanhecer. Levavam marmita e, sem ter onde esquentá-las, comiam fria no meio dos canaviais, sem fazer hora de almoço. Por isso ficaram conhecidos como boias-frias.
O LEVANTE
Esse quadro começou a mudar entre os dias 14 e 19 de maio de 1984, a partir de um movimento grevista que ocorreu na cidade de Guariba, distante 50 quilômetros de Ribeirão Preto. O movimento reuniu milhares de trabalhadores rurais, indignados com a situação e botou, literalmente, para quebrar.
FUMAÇA DA ESTRADA
“Chegamos na redação dia 14 de maio de 1984 pela manhã e nos mandaram para Guariba. Disseram que tinha uma greve de trabalhadores rurais. Fomos eu, a Érica Amendola (repórter), o motorista de apelido Graia (não me recordo o nome) e o Maurício Ligeirinho (também não recordo o sobrenome), que era auxiliar de VT”, lembra Maurício Glauco, repórter cinematográfico da então TV Ribeirão (hoje EPTV), que participou da cobertura do que ficou mundialmente conhecido como o Levante de Guariba.
Da estrada, a equipe de reportagem viu fumaça vindo do Centro de Guariba. Na entrada havia uma barreira de policiais militares. Esperavam reforço de Ribeirão Preto para entrar na cidade. Aconselharam os jornalistas a não entrarem, mas eles seguiram.
Glauco, Érica e equipe chegaram ao local, em frente à Igreja Matriz. “Uma multidão. Todos com podões, facões e foices. Paramos o carro e eles nos cercaram. Então surgiu o José de Fátima [Soares, líder dos trabalhadores rurais]. Era ele quem colocou ideias de melhorias para os trabalhadores. O José de Fátima falou que era para nos deixarem trabalhar e assim o fizeram”, lembra Glauco.
Ele carregava uma câmera de nove quilos e o auxiliar de TV, Ligeirinho, um equipamento de 11 quilos, que não ficava a mais de 1,5 metro da câmera por conta dos cabos. Érica carregava o microfone e plugava para gravar sons, quando necessário. E o motorista segurava a torre de iluminação.
O estopim do movimento foi um aumento na tarifa de água anunciado pela Sabesp, de 60%. E milhares de pessoas foram até a sede da companhia de água em Guariba. Depredaram o prédio. A equipe da então TV Ribeirão foi atrás. Depois o grupo foi até a garagem da empresa de água, ao lado da garagem da Prefeitura de Guariba.
“Começaram a virar caminhões e colocar fogo. Viraram vários caminhões. Depois eles voltaram na direção da igreja e começaram a saquear um supermercado. A essa altura, o reforço já tinha chegado e começaram os tiros”, recorda o repórter cinematográfico.
Com o reforço de 150 homens do pelotão de choque da PM de Ribeirão Preto, o local virou cenário de guerra. Bombas de efeito moral e tiros foram disparados para conter os grevistas. Pelo menos 30 pessoas ficaram feridas.
“A Érica achou impossível estarem atirando. Mas pedi para ela se abrigar. Fomos eu e o Ligeirinho. Comecei a filmar tudo. Ficamos abrigados num caminhão basculante. Vi uma pessoa levar um tiro na barriga”, acrescenta Glauco.
PRÊMIO HERZOG
Quem também estava por lá era o fotógrafo Osmar Cardes, hoje com 87 anos, que trabalhou em diversos jornais de Ribeirão Preto e do Brasil. Ele estava tirando fotos do movimento para o jornal Folha de São Paulo quando os tiros começaram.
No meio da correria, gritos e bombas de gás lacrimogênio estourando por todo lado, ele lembra de estar fotografando uma pessoa que tinha levado um tiro na perna. Foi quando lhe disseram que tinha um homem morrendo. “Virei e uma moça já estava segurando o homem, na escadaria da igreja. Fotografei e continuei meu trabalho. Só no dia seguinte, quando fui revelar a foto, é que vi o que tinha registrado”, lembra.
O homem morto era o metalúrgico aposentado Amaral Vaz Melone, de 49 anos. Ele observava o movimento quando levou um tiro no rosto. Foi a única vítima fatal do levante. Cardes recebeu o prêmio Vladimir Herzog de 1984, categoria fotojornalismo, pelo registro.
REPÓRTER DE REDE
Por exigência da TV Globo, à época, era preciso que a matéria tivesse um repórter de rede. Érica acompanhou todo o movimento e fez reportagens para o noticiário local, mas não era repórter de rede. “Foi um dia longo. Chegamos às 8 horas e só saímos no final da tarde, porque tínhamos que editar a matéria para o Jornal Nacional. Por exigência da Globo, o Nelson Araújo, que era repórter de rede, apareceu por lá no final da tarde”, observa Glauco,
Com informações de Érica, Araújo teria feito a passagem, quando o repórter aparece descrevendo um trecho da reportagem. O trabalho foi premiado à época.
VIOLÊNCIA DA PM
Acuados, os trabalhadores rurais começaram a correr para o bairro João de Barro, onde a maioria deles vivia durante a safra. Eles acabaram cercados pela PM. Há relatos de que os policiais entrevam nas casas e batiam em adultos e crianças, com cacetetes.
“Não eram de borracha, eram de metal mesmo”, acrescenta o repórter cinematográfico. Pelo lado da PM também houve uma baixa: um pastor alemão foi degolado por um golpe de podão ao ser atiçado para atacar um boia-fria.
Nos dias seguintes, o movimento cresceu, ganhando adesão de lavradores das cidades vizinhas, como Barrinha, Morro Agudo, Jaboticabal, Pradópolis e Bebedouro. O movimento durou até 19 de maio, quando após uma reunião entre grevistas e representantes da Secretaria das Relações de Trabalho de São Paulo e do Ministério do Trabalho firmaram um acordo.
Parecia, enfim, que a bonança e o respeito iriam finalmente atender aos trabalhadores rurais. Apenas parecia.
As vitórias
Entre as conquistas, estavam a volta do sistema de corte em cinco ruas e não mais em sete como havia sido implantado (reduzindo ganho e aumentando desgaste físico dos trabalhadores); pagamento de 13º salário, férias, descanso semanal remunerado e direito à indenização em caso de demissão. Também conseguiram aumentar o valor pago pela produtividade, regulamentar o transporte em ônibus e fornecimento de equipamentos de proteção.
As mudanças não foram imediatas, tanto que, em janeiro de 1985, novos confrontos ocorreram em Guariba, com mais agressões da Polícia Militar a trabalhadores rurais revoltados. Novamente o bairro João de Barro foi visitado pela tropa de choque. Por outro lado, o levante de 1984 e o movimento de 1985 iniciaram uma mudança significativa nas relações de trabalho no campo, que se acentuou com a Constituição Federal de 1988, aumentando os direitos e benefícios dos boias-frias.
José de Fatima, a liderança
Tive que conter muita gente. Depois de incendiar os caminhões, queriam quebrar as bombas da Sabesp
José de Fátima Soares era um dos trabalhadores rurais presentes ao Levante de Guariba. Além de cortador de cana, era uma liderança dos trabalhadores. Foi considerado o melhor e mais eficiente cortador de cana-de-açúcar da América em 1981. Naquele dia 14 de maio de 1984, exerceu essa liderança exaustivamente, para tentar evitar o pior.
O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Guariba foi fundado em 1962, mas na época do Regime Militar, sofria constantes intervenções. E vivia sob intervenção desde 1981. Um juiz classista de Jaboticabal era o interventor daquele e de outros sindicatos de cidades vizinhas.
No dia do conflito, o Sindicato estava sem poder atuar. “Tive que conter muita gente. Depois de incendiar os caminhões, queriam quebrar as bombas da Sabesp. Não deixei quebrar. Tive que explicar que isso deixaria todos sem água. A cidade inteira iria sofrer as consequências”, lembra Soares.
Mas sem sindicato, o líder do movimento não conseguiu impedir que as coisas saíssem de controle. Tudo piorou com a chegada da tropa de choque da PM. O ex-cortador de cana admite que o reajuste nas contas da Sabesp teria sido o estopim do movimento.
Os trabalhadores rurais estavam descontentes com o sistema implantado. Nos canaviais, passaram de cinco para sete ruas, com o objetivo de reduzir o custo dos usineiros com transporte. Os cortadores de cana teriam que trabalhar mais, com maior desgaste físico, para diminuir as perdas de salário.
Sem contar que a grande maioria não tinha registro em carteira, vivia em alojamentos precários e não tinha equipamentos de proteção. O transporte era improvisado, feito em caminhões, com podões viajando junto de seus “operadores”. Em caso de acidente, qualquer situação poderia ser fatal.
Soares lembra que, durante a greve dos trabalhadores, com adesão de quase 100%, houve uma tentativa de diálogo com o gerente da Sabesp, mas ele teria se recusado a receber os grevistas e se refugiou na Delegacia de Polícia. Era o estopim para o movimento.
Meses depois, em setembro de 1984, Soares venceu as eleições e assumiu a presidência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Guariba. “A posse foi em 29 de setembro de 1984”, conclui.
Conquistas? Problemas persistem até hoje
Entre os dias 30 de abril e 03 de maio deste ano, 14 trabalhadores rurais foram resgatados de trabalhos em condições análogas à escravidão. O Ministério Público do Trabalho realizou o resgate em Guará, cidade com nome parecido a Guariba. Distantes 135 km. uma da outra. Mas, mesmo 40 anos depois, ainda ocorrem casos como este, onde os trabalhadores ficam em alojamentos precários, sem as mínimas condições de higiene, trabalham sem equipamentos de segurança, sem acesso a água potável em boa parte do dia, entre outros problemas.
Adeus a Érica
A jornalista Érica Amêndola, que realizou um grande trabalho na cobertura do Levante de Guariba, faleceu no dia 30 de abril, aos 63 anos. Além de repórter da TV Ribeirão, Érica também foi apresentadora da emissora e passou por SBT, Record, além de outras redações de rádio, TV, jornais e revistas. Trabalhou com assessoria de imprensa e, em seus últimos anos de vida, estava na TV Thathi. Deixa um grande legado.