Tribuna Ribeirão
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A curva do tempo 

Edwaldo Arantes * 
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Sempre pulei da cama muito cedo desde menino na infância das minhas terras com suas montanhas em curvas, semelhantes à silhueta de uma mulher nua deitada sobre a relva. 
Sempre vou caminhando ao trabalho, ainda na penumbra, com os passos iluminados pela lua que ainda brilha no céu. 
Encanta-me ouvir o movimento da cidade despertando, lembrando os Titãs espreguiçando em seus esconderijos secretos  no topo do Olimpo. 
Caminho sentindo aos poucos o desaparecer do luar e os primeiros raios surgindo no horizonte, batendo com leveza nos vitrais, expondo sua luz,  desenhando uma aurora multicor, imitando as pinturas das catedrais com seus traços coloridos, misturando nuvens, anjos, santos e mistérios insondáveis, tão distantes dos meus parcos e ignorantes entendimentos. 
O ato de percorrer os caminhos olhando os próprios passos, desenvolvem lembranças  que não possuem uma  ordem cronológica razoável. 
O pensamento nos transporta com seu poder de projetar o passado,  despertando   visões da infância em seu túnel do tempo, naves interplanetárias, castelos, dragões, Contos dos Irmãos Grimm e as matinês aos domingos no Cine Recreio. 
Vejo claramente  minha mãe frente ao fogão, passando o café preto e fumegante. 
Sua benção mãe! 
Deus te abençoe meu filho. 
Pego a caderneta amarela surrada, atravesso a praça até a padaria da família Dramis em busca do leite e o pão quentinho,  recém brotado do forno. 
O senhor “Zé Dramis” tomava nota na papeleta e os valores  eram saldados todos os meses, após a chegada dos   vencimentos. 
Volto aos meus passos, encontro-me nos primeiros bailes, inúmeros naquela época, Debutantes, Mães, Primavera, Rainha do Café e Ipê, culminando com o Réveillon onde a gente permanecia na praça até o dia clarear,  depois da canja no “Bar Papagaio” do senhor Fiinho, servida pelo Château. 
As primeiras braçadas na   Associação Esportiva Paraisense que contava   duas piscinas, uma olímpica e a outra dedicada às crianças e aos adultos  que nunca experimentaram  a glória  de ser nadador,  assistindo  entre cochichos, sussurros e elogios. 
Na minha história a natação foi como este caminhar que faço agora, pertinho das sessenta e cinco “primaveras”. 
Um esporte que se pratica absolutamente só, braçadas sincronizadas, corpo em movimentos harmoniosos, fortes e decididos, respiração compacta e simultânea, percorrendo metros e metros, como as andanças rápidas pelas ruas escuras. 
Quem foi nadador sabe o que  significa, determinação,  silêncio,  concentração e equilíbrio,   onde o único barulho é o deslocamento da água, uma  total dedicação na  busca do resultado maior. 
Tempos após, veio a Praça de Esportes Castelo Branco, continuei a nadar e brilhar em uma busca insana de vencer sempre. 
Hoje, apenas um bípede sem água, na vertical e equilibrando sobre os meus trôpegos passos de homem. 
Sou transportado a um janeiro distante, adentrando um  “São Bento”, rumando para a cidade grande com o foco em obter um diploma,  pendurar na parede e  ficar olhando quando não resta mais nada a fazer. 
O caminho é longo, pensamentos afloram difusos e embaralhados, semelhantes às cartas em jogos eternos na casa do meu tio, maestro Lalado, nas tardes que antecedem as noites de Carnaval no Clube Paraisense. 
De volta ao presente, chego ao trabalho com o dia já claro, carros brotam em profusão, pessoas avançam, umas apressadas, outras marcadas pelo peso dos anos, apenas tateiam. 
Crianças cambaleantes de sono dirigem-se à busca do saber,  repicam os sinos da Catedral de São Sebastião, Igreja São José, São Benedito e, também, a Paróquia dos Estigmatinos. 
Sigo o rito dos meus dias imerso no labor, o estrito cumprimento do ofício, suas tarefas, afazeres e incumbências, sem sonhos e ilusões da juventude, o nosso “ganha-pão”,  como dizia mamãe. 
O Poeta Maior se faz presente: “Os olhos não choram e as mãos tecem apenas o rude trabalho e o coração está seco”. 
Já não mais brotam os planos e os devaneios de um passado para sempre perdido, a visão da jovem, de saias rodadas azuis, meias soquetes, olhos esverdeados e a graça da juventude em seu sorriso enigmático.    
Consigo ver o seu caminhar altivo, derramando sobre os nossos sonhos sua deslumbrante beleza e o charme de normalista, cursando o magistério no Colégio Paula Frassinetti. 
A realidade aparece em sobressalto,  os sonhos se dissipam na curva dos anos e a roda viva da vida gira nas esquinas onde se espera o nada. 
Perplexo, penso no genial poeta, compositor e escritor, Francisco Buarque de Hollanda,  em um dos seus  belos momentos, criando palavras e tecendo  versos  “Buarqueanos”: 
“E quando um homem já está de partida da curva da vida ele vê,  que seu caminho não foi um caminho sozinho porque,  sabe que um homem vai fundo  e vai fundo e vai fundo se for por você”. 
 
* Agente cultural 

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