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Padre Júlio e os vendilhões do templo 

José Antônio Lages * 
 
Por mais escandaloso que possa parecer, a fé das pessoas vem se transformando em objeto de disputa, em muitos círculos. Essa disputa não é apenas política e teológica, como já é tradição, mas também no aspecto econômico e financeiro. O próprio Michel de Certeau já escrevia isso por volta de 1950. Ele tinha razão: o lado religioso seria mais um aspecto da vida humana do qual o capitalismo se apropriaria! Já temos hoje um verdadeiro mercado da fé. Max Weber, no seu clássico “O espírito protestante e a ética do capitalismo”, já percebia algumas consequências da relação do sagrado com a emergente sociedade burguesa e capitalista no século XVI. 
 
O protestantismo rompeu com a mediação da Igreja entre o crente e a divindade. O fiel passou a ter uma relação direta com Deus, reforçando o individualismo e sua liberdade pessoal. Temos aí a origem de um verdadeiro empreendedorismo religioso. Em cada esquina surge uma pretensa liderança religiosa que abre a sua igreja, às vezes, sem que tenha sequer qualquer formação teológica. A motivação principal é amealhar os dízimos. Pequenas igrejas se transformaram em grandes negócios, até porque se tornaram também verdadeiros currais eleitorais, permitindo a negociação de benesses e troca de favores com lideranças políticas. 
 
É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”. Se lembra? Pois é…  Ao contrário do catolicismo que condenava a usura e dizia que o pobre era um filho privilegiado do Senhor, o protestantismo vai, em conformidade com o mundo capitalista nascente, valorizar o trabalho e o acúmulo de riquezas. Lembro-me aqui daquele pobrezinho de Assis, acho que ainda vale a pena assistir ao filme “Irmão sol, irmã lua”. Com Calvino, o sucesso material na vida terrena passa a ser um sinal de escolha pelo Senhor. A teologia da prosperidade hoje, muito comum entre os neopentecostais, é a radicalização dessa relação entre salvação e sucesso material. 
 
Os empresários da vendem a salvação, loteiam o além túmulo. Os mesmos que adquirem cadeias de rádio e televisão, que investem fortunas em suas campanhas políticas, que passam a movimentar grandes somas de dinheiro, na maioria dos casos em espécie, sem pagar impostos. Você acompanhando o debate sobre a isenção tributária das igrejas? Por outro lado, o dogma da predestinação absoluta reforçam preconceito contra os mais pobres, aqueles que não conseguem ascender socialmente. Além da pobreza, passam a contar com o estigma de serem aqueles que não foram escolhidos, que estão condenados ao inferno. 
 
Essa lógica do povo eleito é transferida para a esfera política, com os bolsonaristas se considerando o povo escolhido, que possui a verdade e que, em última análise, tem o direito de eliminar aqueles considerados pecadores, filhos do diabo, decaídos, os comunistas, os de esquerda. Bolsonaro apareceu na boca de pretensos profetas como o enviado do Senhor, como um predestinado, que venceu a morte em Juiz de Fora, que veio para salvar o povo de Cristo. Todo este preâmbulo para compreendermos o pedido da tal CPI contra o padre Júlio Lancelotti, feito na Câmara Municipal de São Paulo pelo vereador de extrema-direita Rubinho Nunes. 
 
A tentativa de criminalizar a atuação do padre Júlio não é uma novidade. Ela se inscreve numa longa trajetória de ataques e ameaças, inclusive à vida do sacerdote. Ele, já há muito tempo, é um dos alvos privilegiados dos ataques do bolsonarismo, nas redes sociais. E por que ele incomoda tanto? Primeiro, porque sua atuação é a própria encarnação da verdadeira mensagem do Cristo, que não tem nenhuma relação com cobrança de dízimos, com sucesso material, com enriquecimento das pessoas. Segundo, porque ele não dá apenas esmolas, ele denuncia o sistema, a ordem social que joga aquela gente fora como se fossem dejetos de seu funcionamento perverso. 
 
O padre Júlio tornou-se insuportável porque ele segue os passos do Cristo que se enfureceu ao ver o templo de Jerusalém transformado em mercado, a ponto de brandir o chicote e expulsar os vendilhões. Ao chamá-lo de cafetão da miséria, o vereador que o persegue deixa claro seu ódio aos pobres. Hoje, estão aí os mesmos vendilhões em muitos templos. Erguem suas armas contra o padre Júlio porque este escancara a sua traição à boa nova do próprio Jesus. Toda a nossa solidariedade ao padre Júlio Lancelotti! 
 
* Consultor técnico-legislativo e ex-vereador em Ribeirão Preto (Legislatura 2001-2004) 

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