Tribuna Ribeirão
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Diálogos insólitos

Edwaldo Arantes * 
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Sempre nestas manhãs de céu estático e anil penso no meu passado de funcionário público nomeado para a Secretaria da Cultura, localizada  no “Parque do Morro do São Bento”, com sua praça,  bosque e complexos culturais e esportivos. 
 
Gostava de caminhar e perambular  admirando aquele conjunto arquitetônico e  botânico, com sua  flora exuberante,  frondosas árvores, copas e sombras, onde se destacam   os formosos Ipês que no inverno brindam quem passa com suas flores de diversas tonalidades. 
 
Os Ipês são muito familiares aos meus olhos, minha terra possui o título de “Cidade dos Ipês”, essas maravilhosas e misteriosas dádivas da natureza, se destacam pelas cores distintas, respeitando a ordem de florescerem , roxo, amarelo, rosa e branco,  existindo ainda o verde”, que se revezam e disputam a preferência dos olhares emocionados e perplexos com as cores e  suas formas. 
 
No meio das lembranças veio-me à tona um fato que absolutamente nenhum nexo com os Ipês possui, a não ser por ter como protagonista um residente das Gerais, senhor Arlindo Ambrósio de Jesus, dedicado e competente jardineiro da praça da matriz, rodeada de “pau d’arcos, cuidados como se  fosse a sua casa e  muitas vezes proporciona correrias danadas, quando nos dedicamos  a arte de surrupiar rosas para depositá-las nas janelas das amadas em nossas serenatas nas madrugadas de sábado. 
 
O senhor Arlindo tinha como característica algo bem peculiar, nunca havia sequer saído do seu torrão em toda a vida, jamais em tempo algum cruzou as fronteiras do município, nem mesmo para uma visita ao sítio dos parentes, nas noites natalinas. 
 
O Dr. “Urias Grau” tradicional e competente médico da província vaticinou do alto da sua sabedoria terapêutica em raríssima e inédita consulta proporcionada ao paciente,  depois de muitos apelos,   que nunca na sua longa existência,  com muitos “São Pedros” na cacunda havia sequer   passado  próximo a um jaleco branco,  clínica ou  hospital, quiçá um “esculápio”. 
 
O Doutor explicou aos familiares a necessidade de uma consulta a ser feita em Ribeirão Preto para a realização de diversos exames e aviou os pedidos e procedimentos a serem realizados. 
 
O respeitado e tradicional horticultor foi ficando cada vez mais apreensivo, taciturno e macambúzio ao passo que se aproximava 0 fatídico momento de adentrar um “São Bento”,   rumar para terras desconhecidas e por “mares nunca dantes navegados”. 
 
Na data marcada acordou antes das galinhas tomou seu café com um naco de pão, meteu-se em um paletó de linho, presente de um renomado causídico da cidade,  indumentária esta, hoje em absoluto  desuso, cheirando a “naftalina”, apenas adentrado ao corpo no dia do matrimônio, aposentado e  esquecido no canto do guarda-roupas. 
 
E lá foi o senhor Arlindo ao encontro da “jardineira” caminhando na frente, em passos lépidos, seguido por um séquito em cortejo formado pela esposa, filhos, noras, genros, netos e vizinhos, “emborná” pendurado no ombro recheado com frango, broa de fubá, queijo, uma pequena garrafa de café e a inseparável caneca de alumínio, preparados pela dona Judite para a  jornada e o calvário. 
 
O coletivo balançava e rangia assustando vacas, bezerros, cachorros e transeuntes sob o pó da estrada. 
 
Pela janela passavam currais, pinguelas, pontes, morros, açudes, cafezais, riachos e o senhor Arlindo lá atrás, branco como cera, olhos arregalados e o “palheiro” no canto da boca, escondido pelo chapéu de palha surrado. 
 
Chegando a Ribeirão Preto pela Avenida da Saudade, passando em frente ao “Três Garçons”, o cobrador dirigiu-se aos passageiros recolhendo os bilhetes furando com alicate marcando a conferência, colocando-os  entre os dedos. 
 
Ao chegar a vez do senhor Arlindo travou-se o seguinte surreal diálogo, que procuro transcrever com absoluta fidelidade, com foi-me passado pelo saudoso Dr. Haroldo Garcia, talentoso músico e médico  que cumpria Residência  no Hospital das Clínicas da USP/RP   viajando na poltrona ao lado. 
 
– Meu senhor, o seu bilhete, por favor. 
Que bilhete? 
A passagem. 
Que passagem?   
Aquela que o senhor comprou em Paraíso. 
Olha aqui seu moço, eu sou mineiro, fio de barba, paguei com dinheiro vivinho da Silva, lá na rodoviária pro Nersinho. 
É que eu preciso do comprovante, insiste com voz cansada e quase irritada. 
Que comprovante? Recomeça senhor Arlindo. 
 
E a pendenga se arrasta tal qual luta sem socos, até que num lampejo, coçando a barba branca e rala com os dedos finos e amarelos, num sopro de lembrança, balbucia entre os dentes: 
 
Aquele “paperzinho marelinho”? 
 
E o cobrador com um semblante aliviado, exclama: 
 
Sim.  Aquele mesmo, graças a Deus! 
E o senhor Arlindo com um meio sorriso maroto no canto da boca, revela: 
Pitei! 
 
* Agente cultural 

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